A epidemia de jogos de azar no Brasil vai além do poder dessas empresas como patrocinadoras de times de futebol, da publicidade por meio de influenciadores ou da frequência de anúncios na televisão. Relatório técnico do Banco Central divulgado na noite desta segunda-feira (23) revela que o comprometimento com o dinheiro – principalmente entre pessoas de baixa renda e beneficiários do Bolsa Família – é maior do que era esperado.
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Especialistas ouvidos pela Forbes Brasil mostram que os números revelam não só a possibilidade de aumento da desigualdade social no país, mas também de maior adoecimento mental entre os jovens usuários.
Dados BC
Segundo o documento, as empresas de jogos e apostas receberam cerca de R$ 21 bilhões só em agosto, dos apostadores. Especialistas do BC indicam que esse número pode estar subestimado, pois contabiliza apenas transações realizadas por meio do Pix, sem cartões de crédito e outros tipos de operações bancárias.
A autoridade identificou quase 24 milhões de pessoas que postaram pelo menos uma durante o período em análise. A maioria tem entre 20 e 30 anos, e o valor comprometido com jogos de azar aumenta com a idade: para os jovens, o valor gira em torno de R$ 100, enquanto pessoas com mais de 30 anos apostam cerca de R$ 1,5 mil por mês. O número é ainda maior entre quem tem mais de 60 anos, chegando a R$ 3 mil.
Um dos fatores que mais chamam a atenção são os compromissos financeiros de programas de transferência de renda, como o Bolsa Família. Segundo o BC, 5 milhões de beneficiários enviaram R$ 3 bilhões via Pix para empresas de apostas somente em agosto.
O valor médio gasto por pessoa é de R$ 100. A maioria dos que jogam – cerca de 70% – são os próprios chefes de família, responsáveis pela obtenção do lucro. Atualmente, o Bolsa Família atende aproximadamente 20,5 milhões de famílias, com benefício médio de R$ 681,09. Na verdade, isto significa que cerca de 21% do número total de beneficiários recebe uma parte dos benefícios aos livreiros.
“Estes resultados são consistentes com outros estudos que indicam que as famílias com baixos rendimentos são as mais afetadas pelo jogo. É razoável supor que o apelo comercial de enriquecer através das apostas seja muito atrativo para quem está em crise financeira”, afirma o BC.
A desigualdade social está em foco
Apesar de “interessante”, Daniel Duque, pesquisador do departamento de Economia Aplicada do FGV Ibre, acredita que os R3 bilhões dos beneficiários do Bolsa Família não representam desperdício de recursos. Para ele, parte desse importante valor se deve à inatividade do novo sistema do programa – que não aumentou o valor disponibilizado, mas também facilitou a vida de quem poderia se cadastrar. As mudanças feitas pelo governo tiveram como objetivo dar maior independência financeira às mulheres de baixa renda, mas as estatísticas do BC mostram que os responsáveis pelos benefícios são aqueles que dão mais dinheiro para jogar.
“Se olharmos para a população como um todo, os números não seriam tão diferentes. O problema é a epidemia do jogo na realidade. A regulamentação, com restrições mais fortes, já deveria ter sido implementada. Precisamos urgentemente de um grupo de trabalho no Congresso para discutir as melhores formas de gerir esse trabalho”, argumentou o economista.
Na visão de Duque, apesar da baixa qualidade oferecida pelo programa, algumas famílias agora têm mais dinheiro, o que permite gastos em setores e serviços que antes eram inacessíveis, mostrando a moral dos grupos A e B. Agora, o problema está no nível geral. doença
“Vemos mais pessoas da classe C jogando do que pessoas da classe A. Quem já tem muito dinheiro não sente necessidade de jogar, enquanto a classe baixa, com outros recursos além dos básicos, vê o jogo como jogo. Este fenómeno pode ter consequências negativas, sobretudo para as famílias vulneráveis, que acabam por gastar muito dinheiro no consumo deste tipo”, sublinha.
Duque destaca que, nos Estados Unidos, estudos mostram que, para cada dólar apostado, uma família perde o dobro de suas economias. No Brasil, o resultado é o mesmo. Para ele, a solução não é mudar o Bolsa Família.
Uma recessão?
O aumento da desigualdade também pode vir de outro setor: a recessão. O economista da FGV Ibre alerta que os bilhões investidos nas casas de apostas acabam alimentando um sistema improdutivo. Os pagamentos iniciais são baixos e o setor gera poucos empregos.
“Se destinarmos 20% ao jogo, deixamos de utilizar outros bens e serviços geradores de emprego, como a venda de vestuário ou a construção. Estes sectores reais não trazem os mesmos benefícios económicos que os sectores convencionais, como o vestuário, a alimentação ou o turismo”, disse. conclui.
Forte impacto social
Para Rodrigo Machado, psiquiatra e pesquisador do Ambulatório Médico de Transtornos do Impulso, do Centro de Psiquiatria da USP, há preocupação com o número de jovens envolvidos em jogos de azar. “O córtex cerebral está em processo de desenvolvimento até se tornar adulto, entre os 22 e os 24 anos. Antes disso, as vias do cérebro não estão totalmente desenvolvidas, tornando mais provável a vulnerabilidade dos cidadãos expostos a estes métodos nesta fase da vida. “, explica ele.
Os beneficiários do Bolsa Família pertencem ao grupo populacional mais afetado pela dependência geral. Isso se deve ao baixo nível de escolaridade sobre os riscos desse procedimento.
“Vimos muito isso com o ‘jogo do tigrinho’, onde influenciadores pressionavam muita gente, dizendo que era uma fonte de dinheiro extra. Muitas vezes, os cidadãos nem sabiam que era um jogo de dinheiro, e que a maior possibilidade era que não venceriam”, explica o psiquiatra.
Segundo Machado, cidadãos que já estão muito vulneráveis ficaram ainda mais expostos ao verem números confiáveis promovendo esse tipo de operação, principalmente pela falta de informações, inclusive do governo da corporação, sobre os riscos envolvidos.
O vício do jogo é clinicamente classificado como Transtorno do Jogo, que faz parte da categoria de vícios comportamentais. Um psiquiatra explica que essa condição pode ser curada quando o paciente passa a confiar em comportamentos que lhe tragam felicidade.
“Você não é viciado apenas em substâncias químicas. Também podemos ficar viciados em comportamentos que atraem o cérebro, como abuso sexual, compras, jogos de azar ou uso de tecnologia em geral”, explica.
A perda de controle ocorre quando há efeitos perceptíveis na vida de uma pessoa, como gastar mais dinheiro do que o planejado e passar mais horas em atividades de jogo. Além das perdas financeiras, outros aspectos da vida do viciado em jogos de azar podem ser afetados, como problemas familiares e redução do sucesso no trabalho ou na vida acadêmica.
O impacto social e familiar é muitas vezes terrível, pois muitas famílias são separadas, divididas e os laços tornam-se cada vez mais precários. Por outro lado, o apoio e apoio das famílias são muitas vezes importantes no tratamento das pessoas afetadas para alcançar bons resultados”, conclui.
A última gota para apostar?
O resultado dos números fez o governo anunciar que discute a adoção de medidas de controle das “apostas”, mas ainda não há informações concretas. Em alguns momentos, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, defendeu o fortalecimento das regras de publicidade das empresas e a proibição do uso de cartão de crédito.
O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, afirmou recentemente que vê o crescimento do setor de jogos de azar como um problema que pode aumentar as expectativas de endividamento e a inadimplência. Segundo ele, houve um aumento de mais de 200% desde janeiro no dinheiro que os jogadores transferem para as empresas do setor por meio do Pix. A afirmação foi feita no evento do Banco Safra com investidores, na última terça-feira (24).
“Temos a sensação de que poderemos ter uma piora na qualidade do crédito, com comprometimento significativo da liquidez. São números que chamam a atenção e começamos a perceber que haverá impacto de não termos sucesso no futuro”, explicou Campos Neto.
No entanto, esses números não são exatamente novos no mercado. O Raio X dos investidores, divulgado anualmente pela Anbima (Associação Brasileira de Entidades de Mercado), mostrou que 14% da população fez pelo menos uma aposta online em 2023. Enquanto isso, apenas 2% que investiram na bolsa. Apenas as ações perdem no mercado de apostas no momento.
O que pode ser feito para prevenir o jogo?
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Confira algumas das possíveis soluções apresentadas pelos analistas da Forbes Brasil:
- Controle executivo pelo Congresso.
- Medidas que visam a educação e prevenção de doenças mentais, com ampla informação sobre o que é o jogo e os perigos associados à prática.
- Regras rígidas sobre publicidade e proibição de uso pela elite.
- Bloqueio de servidores de apostas à noite, principal horário de apostas para doentes.
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