POR MOLLY HERING
Sofrendo com secas severas há décadas, o Cerrado vive uma crise hídrica permanente. Seus aquíferos perdem água mais rápido do que conseguem ser renovados, os rios estão quase secos e a população que vive e produz na bacia hidrográfica do Rio São Francisco, antes cheia de água, começa a duvidar se ainda é possível confiar em seu fluxo reduzido para abastecimento de água e produção de energia hidrelétrica.
Um novo estudo
traz respostas para a causa da seca, que há muito é debatida. Depois de analisar 700 anos de dados climáticos coletados em uma caverna em Minas Gerais, um grupo de pesquisadores concluiu que a seca atual, a mais severa dos últimos sete séculos, seria impossível sem o aquecimento atmosférico causado pela espécie humana.
O estudo, publicado na revista Comunicações da Natureza
faz parte de uma pesquisa mais ampla para compreender a variação climática e as mudanças climáticas no centro-leste da América do Sul.
Cerrado é a savana com maior biodiversidade do mundo
Bioma que abriga 5% das espécies vegetais e animais do planeta, o Cerrado é a savana com maior biodiversidade do mundo e uma fonte essencial de água. Os rios que ali nascem são responsáveis pela produção de energia elétrica para nove em cada dez brasileiros.
Os pesquisadores coletaram dados da Caverna da Onça, no Parque Nacional Cavernas do Peruaçu, no norte de Minas Gerais. A área fica ao sul do Matopiba, área que inclui os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia e é a mais recente e importante fronteira agrícola do país.
“Nesta região, especialmente no oeste da Bahia, que faz divisa com o norte de Minas, o desmatamento e a transformação da vegetação nativa têm um enorme impacto nos ecossistemas, especialmente na vazão dos rios, nos modos de vida e na cultura das comunidades locais ”, explica Mariana Bombo Perozzi Gameiro, consultora sênior da ONG Mighty Earth. “É importante lembrar que 12 das principais bacias hidrográficas brasileiras e três aquíferos – o Guarani, o Bambuí e o Urucuia – dependem do Cerrado como fonte da maior parte de sua água”, acrescenta.
Originalmente, a equipa de investigação planeou utilizar os dados para reconstruir a história dos eventos climáticos na região, tais como fortes chuvas ou secas relacionadas com a actividade vulcânica, mas a consulta às comunidades locais mudou a abordagem dos cientistas.
“Todos nos perguntaram por que o rio estava seco. Eles especularam se a agricultura estaria bombeando água do aquífero ou se um terremoto poderia ter feito com que as galerias subterrâneas engolissem o rio”, diz Nicolás Misailidis Stríkis, principal autor do estudo e geocientista da Universidade de São Paulo. “A tendência da seca era um problema óbvio, mas foi varrido para debaixo do tapete. Quando começamos a estudar, percebemos que isso acontecia em toda a bacia hidrográfica, não apenas no rio São Francisco”, diz Stríkis.
Stríkis e sua equipe costumam entrar em cavernas para estudar espeleotemas – depósitos minerais como estalactites e estalagmites – que permanecem intocados pelo clima externo. Mas, neste caso, optaram por estudar os espeleotemas próximos à entrada da caverna.
“No fundo de uma caverna, a variação anual dos níveis de temperatura e umidade não muda. Mas, próximo à entrada, a temperatura e a umidade relativa do ar mudam bastante, acompanhando o ambiente externo”, explica Stríkis.
Ao estudar a geoquímica dos espeleotemas, os pesquisadores podem medir a precipitação, o potencial de evaporação e a temperatura ao longo do tempo. Quando as estalactites do teto da caverna pingam no chão, elas produzem anéis de calcita que representam o equilíbrio hidrológico – a diferença entre a quantidade de precipitação e evaporação – em um determinado momento. A calcita também pode dar pistas sobre variações de temperatura.
Uma história de 700 anos de seca no Cerrado
Dados combinados de dois espeleotemas diferentes – que incluíam informação sobre os níveis de isótopos de magnésio e oxigénio – e cruzados com informação meteorológica de uma estação climática próxima, sugerem uma clara redução da precipitação e um aumento da evapotranspiração (transformação das águas subterrâneas). solo e plantas no vapor).
“Conseguimos reconstruir 700 anos de informações sobre condições úmidas e secas. Vimos algumas mudanças bruscas, mas nenhuma variação como esta. Observamos que a tendência de seca começou na década de 1970, indicando condições diferentes de qualquer outra época registrada”, diz Stríkis.
Os pesquisadores usaram os dados para construir um modelo capaz de indicar as condições climáticas ao longo do tempo. Ao inserir uma série de variáveis, confirmaram que o dióxido de carbono foi a principal causa do aumento da temperatura nos últimos 700 anos e que a tendência ascendente na sua concentração começou há cerca de 50 anos.
Na década de 1970, a variação da temperatura não pode ser explicada apenas pela variabilidade natural do clima, dizem os investigadores. “Descobrimos que a temperatura não está mais alinhada com as forças naturais da Terra. A década de 1970 é importante porque foi quando a temperatura começou a subir por causa do dióxido de carbono”, diz Stríkis. “Portanto, o que estamos enfrentando agora é uma seca antropogênica severa que afeta não apenas a sociedade, mas também os biomas.”
Soja e gado levam ao desmatamento
“A década de 1970 foi quando o plantio de soja começou a sair do Sul do Brasil em direção ao Centro-Oeste”, explica Gameiro. “Há algumas décadas, o epicentro da expansão agrícola do Brasil, especialmente da produção de soja, passou a ser o Matopiba. Metade da área do Cerrado foi desmatada e substituída por pastagens e plantações. A investigação mostra que esta destruição levou ao aumento das emissões de gases com efeito de estufa e ao défice hídrico, ambos factores que impulsionam a tendência de seca observada no estudo.”
Para Stríkis e a sua equipa, as alterações climáticas globais, e não apenas o uso local da água, causaram a seca na região. “É a combinação ecológica da redução da precipitação com o aumento da evapotranspiração, ambos causados pelas alterações climáticas antrópicas. É o pior cenário que podemos ter”, finaliza Stríkis. “Se fosse causado apenas pela água, poderíamos usar políticas ou tecnologias para superar o problema. Mas porque é causado pelo clima, é o tipo de coisa difícil de mudar.”
No Cerrado, a baixa vazão dos rios dificulta o acesso à água e a produção de energia hidrelétrica. “As grandes explorações agrícolas estão a expandir-se rapidamente. Culturas como a soja dependem da precipitação, pois os campos são demasiado grandes para serem irrigados. Mas o impacto que isto tem na sociedade depende mais de uma política de desenvolvimento sustentável e de utilização da água”, afirma Stríkis.
Se a seca continuar, Stríkis acredita que o Cerrado encolherá, enquanto o semiárido avançará. “As espécies que vivem nesses biomas estão perdendo habitat e diversidade genética. Este é o pior impacto, principalmente depois de todas as extinções que já causamos no mundo.” Segundo Mário Marcos do Espírito Santo, biólogo da Universidade Estadual de Montes Claros, que não participou do estudo, esses resultados são “muito importantes para as políticas públicas e para as mudanças climáticas”.
“Há muito negacionismo em relação ao clima na região, tanto por parte dos representantes governamentais como do setor rural. Até onde eu sei, este é o único estudo no estado que mostra esse nível de refinamento científico de forma muito clara. Mostrei esses dados na minha universidade e tiveram muito impacto”, afirma.
Embora o Espírito Santo reconheça que a seca não é inteiramente causada por mudanças locais no uso da terra, ele destaca que parar o desmatamento é essencial para lidar com as consequências das mudanças climáticas antropogênicas.
“A principal fonte de emissões de gases de efeito estufa no Brasil e em outros países tropicais é a mudança no uso da terra – por meio do desmatamento e da degradação. Não é possível combater as alterações climáticas sem parar a desflorestação. Não se trata apenas de desacelerar, trata-se de pará-lo completamente”, diz ele.
Tradução: Eloise de Vylder
Este texto foi republicado em Mongabay Brasil
sob uma licença Creative Commons. Leia o texto original.
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