Não é possível analisar a dinâmica fiscal sem considerar as escolhas monetárias
Em várias economias, a missão relativa à estabilidade de preços cabe ao banco central do país. Afinal, Milton Friedman já afirmava que “a inflação é sempre e em toda parte um fenômeno monetário” (Causas e consequências da inflação, 1963). Mas será que esta máxima ainda é válida? Para Thomas Sargent, Prémio Nobel da Economia (tal como Friedman), “a inflação persistentemente elevada é sempre e em todo o lado um fenómeno fiscal” (Expectativas Racionais e Inflação, 1986). Juntamente com Neil Wallace, Sargent nos mostrou uma aritmética que os autores descreveram como desagradável: O aperto monetário hoje pode significar o aumento da inflação amanhã. A lógica é a seguinte: o aumento das taxas de juro poderia tornar a dinâmica da dívida insustentável se não for acompanhada de algum tipo de austeridade fiscal (uma vez que (eu) aumenta o custo de manutenção da dívida enquanto (ii) desencoraja a actividade económica, reduzindo as receitas e obrigando o governo a fazer maiores esforços para pagar a dívida). Assim, eventualmente a entidade monetária teria de ceder e aceitar que a economia encontrasse uma saída inflacionária para resolver a dívida pública.
Com este resultado, aprendemos algo crucial (e muitas vezes esquecido no debate público): os resultados macroeconómicos resultam da interação entre a política monetária e a política fiscal ao longo do tempo e não das suas escolhas isoladas. Não é possível analisar a dinâmica orçamental sem considerar as escolhas monetárias, tal como avaliar a política monetária sem considerar o âmbito orçamental é improdutivo.
Será que a inflação no Brasil qualifica como “persistentemente alto”? Para uma primeira análise simples, comparei o resultado acumulado em doze meses do IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo) com a meta de inflação entre janeiro de 2005 e agosto de 2024. Lembro que há uma forte simplificação neste exercício: ao contrário do que acontecerá entrar em vigor a partir de janeiro de 2025, a meta de inflação é para o ano-calendário, portanto, a inflação poderá se desviar da meta dentro do ano sem que isso signifique seu descumprimento. De qualquer forma, em média, a taxa de inflação acumulada em doze meses está 1,4 ponto percentual acima da meta nos meses da amostra. Algo, portanto, faz com que a inflação permaneça persistentemente acima da meta, embora muitas vezes dentro da faixa de tolerância.
Sargent e Wallace estudaram casos limítrofes em ambientes em que a política monetária era conduzida através da emissão monetária e a senhoriagem era um factor crucial. Dez anos depois, Eric Leeper aborda esta interação e as suas consequências num enquadramento mais atualizado (a taxa de juro como instrumento de política monetária) no artigo “Equilíbrio sob políticas monetárias e fiscais ‘ativas’ e ‘passivas’”. O autor propõe quatro situações: (eu) política monetária ativa e política fiscal passiva, (ii) política monetária passiva e política fiscal ativa, (iii) tanto a política monetária como a política fiscal são passivas ou, finalmente, (4) ambos sendo ativos. Aqui, “passivo” significa algo como uma subordinação da política à restrição orçamental intertemporal do governo. Política “ativa” é quando é definida com base em outros objetivos que não o ajuste das contas públicas. Ou seja, quando um deles é passivo e o outro é ativo (casos i e ii), temos o que chamamos no jargão técnico de determinação do equilíbrio macroeconômico: (apenas) uma trajetória clara e não explosiva para a economia. Por outras palavras, alguém é responsável por “manter a linha” relativamente à dinâmica da dívida, ao mesmo tempo que liberta o outro tipo de política económica para diferentes fins.
Nos outros dois casos, o que acontece é que surge uma indeterminação (equilíbrios múltiplos com as duas políticas procurando passivamente satisfazer a restrição intertemporal do governo) ou um processo instável, quando nem a política monetária nem a política fiscal se preocupam em estabilizar a dívida pública.
E como fica a restrição orçamentária intertemporal do governo? A perspectiva é de que o governo pague as contas no futuro ou não? Façamos um breve exercício: vamos supor uma taxa de juros natural de 6,5% ao ano e uma taxa de inflação de 4,5%. Com base nos dados do fluxo mensal do resultado primário consolidado do setor público (em percentual do PIB), disponibilizados pelo Banco Central do Brasil, estimei um modelo econométrico com base em dados de dezembro de 2001 a julho de 2024 e fiz uma projeção para próximos 120 meses. O valor presente dos resultados primários futuros é quase 100% do PIB! Por outras palavras, poderíamos aumentar a dívida para este nível sem ter um problema de sustentabilidade. Será?
Vamos avaliar um cenário: a inclusão de um prêmio de risco na taxa de desconto. Assumi arbitrariamente 3% ao ano e o valor presente dos superávits primários projetados era igual a 88,14% do PIB, muito próximo dos 88,83% que a dívida pública registrava em julho! Portanto, a mensagem deste primeiro exercício é: talvez tenhamos chegado perto de um limite em que, a partir daí, uma das duas políticas (monetária ou fiscal) terá que se ajustar mais do que proporcionalmente para a conta fechar.
Outro cenário: talvez tenha havido uma mudança na dinâmica dos superávits desde 2001. Considerando uma amostra de janeiro de 2014, o valor presente dos superávits primários, mesmo sem o prêmio de risco do cenário anterior, cai para 71,6% do PIB. Ou seja, já teríamos ultrapassado os limites e agora a conta chegou. Neste caso, qualquer objetivo de política económica que desrespeitasse as restrições do governo geraria o mesmo resultado: a inflação viria acertar as contas. Ou, vista de outra forma, a inflação permaneceria… persistentemente superior à meta de equilíbrio das contas públicas.
O resumo de toda essa história é: contar apenas com a política monetária para que a inflação atinja a meta é assumir, conscientemente ou não, que a política fiscal é passiva. Se não for esse o caso, eles devem se coordenar e alguém deve ceder. E isso acontece para melhor ou para pior.