eu amo especialmente música
que Nino Rota escreveu para o cinema. Há muitas coisas bonitas escritas para servir como trilhas sonoras de filmes. Mas, embora aprecie trabalhos tão ricos em textura e atmosfera como o de Bernard Herrmann, ou tão cheios de inspiração e sentimento como o de Victor Young, nenhuma música ouvida na sala de projeção jamais me comoveu tão profundamente quanto aquela que comenta o imagens de “Noites de Cabíria” (de Fellini), aquela que movimenta o drama de “Rocco e seus irmãos” (de Visconti) ou aquela que dá sentido à fábula “A estrada da vida” (de novo Fellini). Talvez isto se deva à proximidade que a música da Rota mantém com a música popular. Na verdade, arrisca-se a ligar o andamento das cenas às melodias, aos motivos melódicos, em vez de se concentrar na criação de climas sonoros apoiados na harmonia e no timbre. Ele não é o único a fazer isso. Outros que o fazem, no entanto, recorrem frequentemente a efeitos sinfónicos em momentos críticos dos filmes. Rota, evidentemente incentivada por Fellini (mas levando isso para outras filmografias), expõe a melodia nua nas cenas cruciais. A presença da ópera como forma sente-se naturalmente, mas é o que mais se aproxima do canto popular nas árias que escolhe como referência.
Então pode ser que eu ame tanto a Rota só porque sou popular e adoro música popular. Seria o suficiente. Mas tudo é mais complexo que isso. O fato é que muitos músicos que convencionalmente trabalham para filmes de baixa qualidade são levados a confiar na melodia. Acima, comparei Rota a alguns grandes compositores de cinema. Mas todas as noites você pode ver um filme ruim na televisão com um tema chato repetido ao som de uma flauta no piano. Nada mais longe de Nino Rota. Os motivos melódicos que cria têm a qualidade misteriosa de parecerem memórias. Na verdade, estão sempre numa linha tênue que (não) separa o que é nostálgico do que é paródico: nunca sabemos se é plágio ou inspiração mística. E é com os elementos que resultam dessas sutis diferenças que ele compõe sua renda de fragmentos melódicos que ecoam, esmaecem e reaparecem no tempo criado do filme.
O músico com quem Rota mais se parece é alguém cujo temperamento se supõe ser muito diferente do seu: Kurt Weill. Tendo também trabalhado sobretudo nas artes performativas, sempre próximo da ópera e da canção popular, do cabaré, do circo, do espetáculo de palco; e igualmente instigado por um autor e diretor de dramas e comédias a comentar em música a própria música que produzia, Weill encontrou um tom que fascina e alerta ao mesmo tempo, permanecendo assim entre a paródia e o envolvimento. Nada de novo aqui: a Rota já esteve ligada a Weill e, o que tem outras consequências, é notável e notório que o alemão influenciou e inspirou o italiano. Embora seja claro que este último trabalhou para criar uma poética do sentimento (sentimental) enquanto o outro, cerebral, trabalhou contra o sentimentalismo. Mas o que conta é que ambos construíram peças complexas usando materiais e técnicas de aparência simples — e que ambos alcançaram áreas que se tocam ou se fundem.
Para a minha formação, Rota foi um artista fundamental. Um dia, na década de 1970, disse a um amigo compositor italiano: “Fellini não seria metade do que é, se não fosse Nino Rota”. Ele me respondeu: “Nino Rota também não seria quem é, se não fosse Fellini”. Eu não discordei. Não conheço o trabalho do Rota fora o que ele fez pelo cinema. Aqui, o que ele fez foi essencial para mim.
Quando compus “Giulietta Masina”, procurei – com muito esforço – evitar qualquer semelhança com a música de Rota. Fui para o Nordeste, mencionei a minha própria “Cajuína”, porque queria dizer que eu, brasileiro, esse interior da Bahia, esse músico popular que fazia música do jeito que eu faço, era eu quem queria para falar sobre Giulietta. E dela. Não do cinema de Fellini ou da música que a Rota fez para ele. Um crítico inglês da revista “Wire” (eu acho) falou muito negativamente do meu álbum Omaggio a Federico e Giulietta, dizendo que não tinha quase nada a ver com os filmes de Fellini, que simplesmente soava como mais um álbum de música brasileira. É isso. O idiota queria algo que soasse como Nino Rota. Ignorante das coisas brasileiras (mas também do cinema italiano), portanto incapaz de compreender onde entra Fellini/Rota/Masina na “Ave Maria” de Augusto Calheiros, no fado “Coimbra” e no “Chega de Saudade”, concluiu que o álbum era uma “sopa de marshmallow” (doçura e sentimentalismo — neste caso, obrigatórios — tiveram que aguentar esse soco neopunk). Mas a Rota está na “Luz do Sol”. E acima de tudo ele está dentro de mim. As músicas que não soam como as dele estão cheias de sua presença.
Recentemente fiz uma música que intitulei “Michelangelo Antonioni”. Não é uma música Ninorotiana. É baseado na atmosfera dos filmes de Antonioni. As referências minimalistas no arranjo homenageiam o minimalismo formal iniciado pelo cineasta. Mas é uma música que ecoa a música italiana. Muitos esquecem que Antonioni é italiano. E ele é muito intenso e profundo. A introdução desta música que escrevi sobre/para ele, cantada em falsete, com alguns cromatismos melódicos e harmónicos, faz-nos pensar em Nino Rota. Aqui, ao contrário do caso de “Giulietta Masina”, não fiz nenhum esforço para me afastar da Rota: com Antonioni já estava suficientemente longe. O compositor italiano Aldo Brizzi me contou que cheguei na Antonioni “via Margutta”, que é a rua onde Fellini morava. Isso é Itália para mim.
Também para “O Quatrilho” compus um tema que ecoou o canto do Rocco no filme de Visconti. Rota escreveu a música deste filme. Mas a música do filme de Fábio Barreto não é ninorotiana. A introdução de “Michelangelo Antonioni” é consideravelmente mais importante. Antonioni, que sabe de tudo, aprovou.
O tema de “As Bon Vidas”, o de “Noites de Cabíria”, o de “Rocco e seus irmãos”, o de “O Poderoso Chefão”; a melodia do trompete de “The Road of Life”, a melodia do acordeão de “Amarcord” – toda essa música faz parte do que de mais lindo se fez no século passado.