Tenho um editor na minha sala. Chama-se Editora Fora de Esquadro e nunca estará totalmente pronta. O projeto existe desde sempre e está em constante mudança. É uma editora, em princípio, sem fins lucrativos, pois não escolhi este caminho como profissão, como fonte primária de apoio. É simplesmente o desenvolvimento de uma semente que veio comigo, desde o berço. Ou talvez seja a continuação de algo que começou com a minha alfabetização, no quarto da minha infância, aos seis ou sete anos. Uma necessidade um tanto inexplicável, desde sempre, de escrever o que estava vivenciando, como se, para existir de fato, precisasse cavar um sulco com tinta em papel sulfite, certificando que realmente estou aqui. Aí descobri que o nome do que eu estava escrevendo era “diário”. Acumulei esses escritos ao longo da minha vida. Minhas estantes apresentam um estudo arqueológico dos formatos desses diários. Primeiro um caderno, daqueles com cadeado, cheio de frases soltas escritas a lápis, datado de 1981, 1982. Depois, folhas soltas de pensamentos e sofrimentos pré-adolescentes um pouco mais elaborados, datadas de 1986.
Mais tarde adotei a prática que estava na moda na época da escola: diários enormes, com descrições detalhadas de tudo o que havia acontecido naquele dia, bilhetes de melhores amigos, colagens dos mais diversos materiais que revelavam acontecimentos do cotidiano: passagens de metrô, passagens de teatro
cinema, embalagens de doces. No final do ano, o diário mal cabia na minha mochila. Já no ensino médio, agora ensino médio, comecei a levar mais a sério meu hábito compulsivo de escrever. A formação de quem sou deve muito a esse ato. Desde então venho colecionando cadernos que ocupam uma estante inteira onde escrever é uma extensão da respiração, mas também uma pequena obsessão, uma mania adquirida. Escrever tornou-se uma necessidade, sim, mas também uma espécie de compulsão patológica. Como se, para entender, eu precisasse escrever. Hoje em dia posso dizer claramente que derramo tinta. Tenho derramado tinta desde sempre. E esse tipo de escrita, tão privada e íntima, está ligada ao que passei a chamar de “Sala Primordial”.
Todos nós temos uma sala primordial que está ligada à nossa essência. E não é nada muito elaborado, não. É aquele momento da vida – que geralmente é a transição da infância para a adolescência – onde um música
faz seu coração bater mais rápido e você fechar a porta do seu quarto ou do canto mais secreto da casa e imitar seu cantor favorito usando sua escova de cabelo como microfone. E isso se estende a um contato mais forte com coisas que te movem, que te deixam apaixonado pela vida. Uma paixão que pode ser por outra pessoa, pode ser por um livro, um filme, um esporte, um caderno, um estojo de caneta, um momento do seu dia, enfim… O quarto primordial é o que faz você se sentir vivo. O tempo passa, a pele dilata, o coração desmorona. Estamos vivos e tudo faz sentido. Mesmo que apenas por um breve momento.
O exercício de uma vida, pelo menos a minha, é manter esta sala ativa até hoje (e para sempre). Mas, ainda naqueles primeiros tempos, também comecei a me conectar com os livros que meu avô, o jornalista Moacyr Corrêa, me presenteava. Aos poucos, sua grande biblioteca foi ficando menor e minhas estantes de livros “que fazem o coração bater”, como na lista de Sei Shonagôn, foram ficando cada vez mais cheias. Foi ele quem me deu “O Morro dos Ventos Uivantes”, de Emily Brontë: uma edição em capa dura, num tamanho que cabe perfeitamente nas minhas mãos. Devorei aquela história e esse também foi meu primeiro “amor tátil” por um livro. Eu namorava vitrines de livrarias e sonhava. Cada livro que consegui comprar ou cada um que recebi do meu avô foi uma conquista. Livros adquiridos, que ficaram magnetizados de valor. Lembro-me de uma edição de “As Flores do Mal”, de Baudelaire, da editora Nova Fronteira. Um livro robusto, com capa vermelha. Foi caro e consegui comprá-lo. Para preservar o livro, cobri-o com Contato. Sempre o carreguei comigo e o li em todos os lugares. Eu tinha uma verdadeira paixão por esse livro. E por muitos outros. “O Jogo da Amarelinha (Rayuela)”, de Júlio Cortazar, “O Caderno de Ouro”, de Doris Lessing, “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, todos os Becketts, todos os Bolaños, são exemplos de livros que fizeram parte da minha sala de treinamento e que agora estão no meu DNA. Hoje em dia a biblioteca do meu avô mora em minha casa e consegui, com o tempo, criar a minha própria.
Mas, voltando aos 17 anos, no quarto primordial que tinha na casa da minha mãe, percebi que queria escrever. Eu queria ganhar a vida escrevendo, mas nunca me passou pela cabeça que tivesse que escrever para viver. Na minha escola, no terceiro ano do ensino médio, tinha o mês profissional e quem foi falar sobre isso? literatura
Era ninguém menos que Zé Miguel Wisnik. Eu tinha (e ainda tenho) uma profunda admiração por ele, pelo seu trabalho, pelo seu jeito “não daqui” de São Paulo. A primeira coisa que ele disse naquela aula foi que literatura não era um diário. E levei um choque, porque pensei: “mas eu sou diarista!” Fui para a Faculdade de Letras da USP e assisti muitas aulas do Zé Miguel. Fui aluno de Alfredo Bosi, Modesto Carone, orientador de Davi Arrigucci Jr. em iniciação científica (uma das pessoas mais importantes na minha formação).
Hoje penso que o Zé Miguel tinha toda a razão. Literatura não é escrever um diário. O diário, penso eu, pode ser a fonte para a construção literária. O exemplo de Ricardo Piglia que sempre escreveu diários e, antes de morrer, pegou a massa bruta dos escritos de sua vida e modelou “Os Diários de Emilio Renzi” é muito legal. Não é apenas o fluxo narrativo que surge do pensamento imediato, mas sim de uma elaboração posterior. Uma elaboração incansável. Acredito que foi a literatura que me levou ao teatro. A palavra falada é uma extensão da palavra escrita. A dramaturgia revelar-se como o texto que se escreve para ser dito foi para mim uma descoberta incrível, pois sempre escrevi “como alguém diz”. Fiz do teatro meu trabalho, meu pão com manteiga. Mas estar no palco é uma possibilidade de interação com o texto entre tantas outras que desfruto no meu dia a dia. Costumo dizer que, além de qualquer nomenclatura profissional, além de qualquer cargo que ocupe, “o meu negócio são as palavras”.
Minha mãe, Alexandra Corrêa, também era diarista. Ela morreu cedo e como todo mundo que é condenado a um diagnóstico, ela sabia que ia morrer (todos nós sabemos, mas esquecemos disso na maioria das vezes). Minha mãe, à sua maneira, preparou-se para a morte durante quatro anos, com muita alegria, saúde e leveza, aceitando que ela faz parte da vida. Extremamente organizada, parte dessa preparação para a morte foi manter seus documentos em dia. Ela riu de si mesma: “Quero ter minha documentação em ordem quando morrer. Isso vai… certo? Ela convocou uma reunião comigo e com meu padrasto Aluízio e nos mostrou onde estavam todos os documentos, separados em pastas etiquetadas: certidões, escrituras, cartões bancários, seguros, senhas, documentos necessários para possíveis inventários. Aproveitei a oportunidade e fiz a pergunta que vinha ensaiando há algum tempo: “E os diários?” Passei a vida vendo ela preencher, com caneta esferográfica, cadernos e cadernos de capa dura, todos do mesmo tamanho, acumulados numa parte da escrivaninha. Ela imediatamente respondeu: “Eu queimei todos”.
Ela e meu padrasto começaram a rir porque parece que ela decidiu queimar os diários na máquina de lavar e quase provocou um incêndio na lavanderia. Minha mãe me contou que isso fazia parte do seu ritual de desapego e que os diários escrevemos para isso: para queimar. Meu choque inicial, com o passar do tempo, se tornou um dos meus maiores aprendizados: diários que escrevemos para queimar. Claro! Quando percebi isso, minha escrita não tinha mais nenhum compromisso com a posteridade. Tornou-se um diário fundamentado, enraizado no presente. Sem compromisso com nada. Minha mão se libertou e a escrita fluiu de uma forma diferente. Minha mãe já tinha queimado todos os seus diários, estava quase pronta. No entanto, ela ainda estava escrevendo um, com capa de cetim vermelho e estampa japonesa. Foi o único que restou. E ele está comigo até hoje. No meu diário desde a morte da minha mãe, escrevi páginas e páginas para tentar compreender essa ausência. Depois, durante quase 10 anos, fui reescrevendo e reelaborando esse diário, transformando a escrita colada no momento presente em literatura e fábulas. A última palavra que minha mãe escreveu em seu diário em 18 de junho de 2006 foi: Avelã. Nada mais. Uma única palavra na página do diário, abaixo do cabeçalho, com a data de qualquer dia. E “Avelã” é o título do meu primeiro livro pela Editora Fora de Esquadro. Na quarta capa, explico:
“Hazel (notas para um romance com tema de morte): A última palavra que minha mãe escreveu em seu diário foi: “Hazel”. A data é 18 de junho, um domingo. Ela morreria 79 dias depois, numa terça-feira, às dezesseis horas e vinte e oito minutos. O telefone devia ter tocado, a máquina de lavar de casa devia estar funcionando com a segunda carga de roupa do dia, alguém colocava café no coador de meias na beirada da janela, 79 dias depois de a palavra “Avelã” ter sido escrita no pequeno diário com capa de cetim. Não posso me perder.”
O livro está pronto para ser impresso, aguardando o momento (entre um romance aqui e uma peça ali) em que poderei me dedicar à encadernação dos poucos exemplares que produzirei manualmente em meu ateliê. Hoje, a Sala Primal se expandiu. Tornou-se uma sala ampla, com uma vasta biblioteca, dezenas de cadernos feitos e preenchidos por mim, com impressoras, guilhotina, prensa, bancada de trabalho, ferramentas de encadernação. Considero que tudo é escrita: o primeiro fluxo de escritos em diários de capa vermelha (depois incansavelmente destilados até se tornarem literatura), o design gráfico do livro, as imagens que o compõem, o formato, o tipo de costura e encadernação, tudo “fala”, tudo faz parte da história. Minha mão passa por todas essas etapas. Com todas as ferramentas existentes para escrever um livro, escrevo como se dissesse.
São Paulo, 20 de agosto de 2024