Em meio a um dos momentos políticos mais sombrios do país, um grupo de jovens negros decide se reunir para dar um baile. O mero encontro em si seria provocativo. Imagine aquelas pessoas que geralmente eram vistas trabalhando nos serviços da cidade, ficando quase invisíveis aos olhos ricos, deixando de lado alisamentos e uniformes para levar o cabelo afro, penteado e arrogância para um baile feito por e para eles.
James Brown no toca-discos e brilhe na pista. O Movimento Rio Negro começa a surgir baseado na música soul e na valorização da negritude. O música Podia até ser norte-americano, mas a forma de sentir, de dançar e de se colocar no mundo era genuinamente brasileira. Mesmo sendo um momento de celebração, ali se criou um movimento cultural, político e social de unidade, dignidade, consciência, que ditou uma tendência estética e, claro, uma referência de dança para os negros no Rio de Janeiro.
Esta é a história contada no documentário “Rio Negro! Poder Negro!” , fruto de mais de 10 anos de pesquisa do diretor e antropólogo Emílio Domingos, que acaba de chegar aos cinemas nacionais. Já conhecido por traçar um panorama fiel e afetivo dos movimentos negros e periféricos, Emílio mais uma vez nos fornece pesquisas históricas necessárias.
Emílio entende que, falar de cultura periférica é falar do Brasil, da nossa base e identidade, já que estamos falando da maioria da população brasileira, pretos e pardos. . “Pensando em termos contemporâneos, a periferia é um grande laboratório, é onde o Brasil realmente pulsa. E é na identidade nacional dessas periferias que emergem o samba, o maracatu e o funk.” analisa o cineasta em entrevista ao Bravo!
O fio condutor que permeia o filme passa especialmente pelas memórias do engenheiro civil jornalista documentarista produtor cultural além de dirigente do Black Rio Asfilófio de Oliveira Filho conhecido como Dom Filó. “Eu estava preparado para todo esse processo, hoje tenho essa consciência. A ancestralidade me levou. Mas, naquele momento, eu era um jovem como qualquer outro, irritado com o sistema, querendo mudanças rápidas.” lembra.
O que começou como uma dança tornou-se um lugar de conscientização, autoestima e celebração. Mais do que isso, passou a marcar tendência, abrindo espaço para produções nacionais e para um embate entre gravadoras. Como é que uma compilação musical vende mais do que os artistas que dominaram a televisão? Como essas pessoas da periferia conseguem reunir tanta gente só pelo boca a boca?
“Acho que essa dificuldade de recursos muitas vezes é superada com inventividade. O Black Rio é um reflexo disso. A dança aqui não é a mesma dos Estados Unidos. Dom Filó e seus amigos pegaram uma cultura que era uma cultura da diáspora e transformaram em algo muito brasileiro e essencial, que ainda hoje está vivo, seja no aspecto ideológico do hip hop, seja através das próprias danças.”
orgulho negro
Tudo começa com o Baile da Pesada do Big Boy, em 1970, onde o soul ganhou força. Mas os negros de classe média não se sentiam representados. Nem para os bailes da periferia, nem para os da zona sul, pois não podiam frequentar as grandes discotecas da cidade. A estética negra da época era um problema: o cabelo afro, os sapatos plataforma, o jeito de se cumprimentar. Assim como hoje, a estética dos negros da comunidade, com seus chinelos, shorts e cabelos descoloridos, incomoda em muitos ambientes.
A Renascença, inaugurada em 1951, foi a única que acolheu a comunidade negra. Dom Filó começou a apresentar Shaft Night, inspirado na série de TV norte-americana de 1971. No baile, foram exibidos slides nas paredes com fotos de artistas e personalidades negras, mesclados com fotos dos participantes do baile e mensagens de empoderamento – estude! , crescer! O público se viu e se reconheceu. O orgulho negro nasceu lá.
O momento foi de renascimento. Se na rua o negro teve que se adaptar, alisar o cabelo, esconder o estilo – e ainda enfrentar duras punições diárias da polícia –, no baile era o orgulho. Os marginalizados foram elevados. Equipes de som surgiram por todo o Rio de Janeiro, uma delas, a Furação 2000, que na época tocava rock em Petrópolis. O encontro com o Soul Grand Prix foi explosivo e a dança viveu o seu melhor e mais politizado momento entre 1974 e 1975.
Paralelamente, lançaram seu primeiro LP, pela Warner, com uma compilação de faixas famosas de soul e algumas produzidas pela equipe Soul Grand Prix. Essa produção explode e nasce a banda Black Rio.
Ficaram na Renascença até 1975, quando a casa fechou para reforma. Para abrir uma entrada nas outras casas, que desconfiavam das mensagens e imagens politizadas, começaram a colocar imagens de carros de corrida e pilotos entre as fotos. A porta do clube Cascadura abre-se e surge o baile de alta velocidade, o Soul Grand Prix. A mensagem que antes aparecia nas paredes agora aparece no meio do som. Dom Filó parava o som de vez em quando para dizer “negros são lindos”, “nós podemos”, “estudar”.
O movimento atingiu seu ápice em 1977, com vendas recordes batendo recordes – e ultrapassando a Tropicália de Roberto Carlos. Pessoas negras empoderadas, plenamente conscientes de que eram bonitas, inteligentes, articuladas. E isso desencadeia todo um movimento social.
Jornalismo unilateral
Junto com Dom Filó, integrantes das chamadas “equipes de som” do movimento, ativistas e frequentadores que vivenciaram de perto o desabrochar das danças tecem retalhos vívidos ao contar essa história. Porque mesmo viva, para quem acompanhou o desenvolvimento do movimento, quase não havia registros da existência do Black Rio.
Se por um lado o movimento negro ganha força na cidade, por outro os militares começam a investigar do que se tratava aquela reunião. Dom Filó e membros da equipe são obrigados a prestar depoimentos, mas nada avança. A esquerda então se irrita e os acusa de serem imperialistas, de serem contra o samba e a música brasileira.
A primeira imagem em movimento que Emílio obteve é uma imagem do Fantástico, de 1977. Durante longos 11 minutos, uma única voz tenta colocar a dança contra o samba, chamando-os de alienados, americanizados e que estavam atacando a música popular brasileira.
Utilizada no filme, a locução do produtor de samba Adão Alves também diz que os jovens não tinham capacidade mental para estar ali. Outra matéria “Black Rio – O orgulho importado de ser negro”, de 1976, escrita por Lena Frias para o Jornal do Brasil, fazia a mesma tentativa de colocar o soul contra o samba.
Mas Filó e seus amigos tinham estratégias para driblar a imprensa alinhadas à ditadura. Eles criaram um personagem chamado J. Black. Eram três jornalistas e um sociólogo que, sob pseudônimo, começaram a escrever para o jornal Última Hora. “Falamos muito bem sobre o movimento. Eles enlouqueceram! Eles iam ao baile e perguntavam, mas nunca conseguiam descobrir. Fomos nós que usamos as mesmas armas que ele. Por outro lado, também sofremos com a Globo criando personagens caricaturados nossos com os Trapalhões”, lembra Dom Filó.
Embora Arlindo Cruz, Leci Brandão e outros grandes sambistas tenham comparecido ao baile, a televisão e a mídia impressa da época investiram esforços para desmoralizar o movimento. As escolas de samba já eram abertas aos brancos e não havia protagonismo negro. Músicas que até xingam as mulheres negras, seus cabelos, seu cheiro, fazem sucesso.
Ao mesmo tempo, o disco ganha força. As gravadoras começaram a investir, a Globo lançou a novela Dancin Days (1978) e o público começou a migrar. Migrar e clarear. As músicas que eram populares e tocadas em todos os lugares não falam mais sobre negritude, os times tentam se adaptar, mas Dom Filó sai de cena. A dança vira disco e, mais tarde, funk.
O legado da bola
Para Emílio, o filme é uma pequena contribuição para que as gerações atuais e futuras conheçam a geração de Filó, o que é fundamental para entendermos quem somos. “E é uma resposta àquela matéria do Fantástico, de certa forma. Acho que é importante que as pessoas conheçam a sua própria história. Esse apagamento me deixou muito indignado.”
“A cultura é uma forma de fazer política. Essa é outra dimensão que temos que lidar no filme, como nossas atividades cotidianas, nossas conquistas nessas direções culturais, são formas de transformação social. É um pouco trazer essa dimensão do que os bailes e do que significou o movimento Black Rio” marca o produtora Letícia Monte . “Rio Negro! Poder Negro!” traz depoimentos do escritor Carlos Alberto Medeiros os músicos Carlos Dafé e Marquinhos de Oswaldo Cruz além de Rômulo Costa e Virgilane Dutra dançarina da equipe Furacão 2000 .
O documentário nos leva de volta ao Grêmio Social Esportivo Rocha Miranda, no Rio de Janeiro do século XVIII, considerado o Templo da Soul e onde acontecia o baile Soul Grand Prix.
“O Black Rio propôs identidade, resistência e autoestima. E o movimento negro teve um papel fundamental nisso. Gostaria muito de deixar esse legado para reduzir o brecha dos conhecimentos necessários para que a nova geração chegue e leve alegria à ancestralidade. Fizemos a nossa parte e estamos entregando o bastão. É um legado muito importante para a condição da identidade negra neste país” celebra Dom Filó.
Além das pesquisas que duraram mais de uma década, o Black Rio enfrentou diversos desafios, desde a escassez de recursos devido ao desmantelamento do apoio audiovisual do governo passado até a pandemia de Covid-19. Mas apesar das adversidades, o filme consegue captar a riqueza do movimento.
“Rio Negro! Poder Negro!” não apenas homenageia o legado da soul music no Brasil, mas também propõe uma reflexão sobre como a cultura periférica continua a definir a identidade brasileira. A história do Black Rio é apenas a ponta do iceberg – podemos até esperar desdobramentos diferentes dessas tantas experiências ali resgatadas . “Talvez com esse projeto e o Chic Show tenhamos inaugurado essa nova vertente de uma série de projetos sobre música negra dos últimos 50 anos” analisa Letícia.
O Brasil é uma dança de norte a sul, mas, como disse Emílio, essa cultura de festa e dança é algo que eles levaram, como diria o jogador do Flamengo, a outro patamar. “Tornou-se uma tecnologia que faz parte da nossa identidade. Todo mundo vai ao baile no fim de semana, os jovens vão ao baile há mais de 50 anos. E foram esses senhores que inventaram isso. Não é pouca coisa. Faz parte do que significa ser brasileiro.”