Unindo forças para dar vida ao roteiro criado pela escritora e atriz Fernanda Torres, Lucas Paraizo e Luisa Lima (responsável pela direção artística) tinha um objetivo claro: explorar as complexidades do comportamento humano. Esse esforço culminou na criação da aclamada série “Os Outros” disponível em streaming Globo Play . Desde a sua estreia, impulsionada pelo forte boca a boca, a série rapidamente captou a atenção do público. A narrativa centra-se numa profunda preocupação: até que ponto uma situação pode agravar-se quando se cede ao desejo de vingança? Para os criadores, esta reflexão revela uma das raízes mais profundas da violência física.
Agora, a guerra urbana entre cidadãos comuns ganha um novo cenário com a estreia da segunda temporada de “Os Outros”. Se na primeira fase a disputa ocorreu entre duas famílias num condomínio de classe média, desta vez a ação desloca-se para um complexo residencial de luxo, elevando o conflito a um novo patamar social. ” E na terceira iremos a campo. Queremos abraçar essa intolerância de diferentes formas, dentro dos sistemas políticos que cada um desses espaços carrega, pequenos microcosmos do nosso Brasil” explica o roteirista Lucas Paraíso .
Alguns personagens antigos, como Cibele (Adriana Esteves), Amâncio (Thomas Aquino), Marcinho (Antonio Haddad) e o miliciano Sérgio (Eduardo Sterblitch), permanecem, enquanto novos personagens entram em cena para intensificar o drama. Raquel (Letícia Colin), corretora de imóveis e líder de uma célula religiosa, e seu marido Paulo (Sergio Guizé) são os mais jovens a criar atritos com Sérgio, hoje vereador.
Um dos primeiros impasses surge com a mudança de Sérgio do condomínio Barra Diamond para o Barra Star Dream, na Barra da Tijuca. Conscientes da reputação do novo inquilino e da sua ligação à milícia, os vizinhos rapidamente se organizam para resistir à sua chegada.
Tanto Lucas quanto Luisa seguiram trajetórias desviantes. Embora formados em jornalismo, ambos migraram para o mundo do entretenimento. Em parte, “Os Outros” reflecte o desejo de examinar a sociedade e analisar a sua evolução num momento de fermentação. A ficção ofereceu-lhes um espaço de experimentação.
“Estes temas fazem parte da nossa vida, dos nossos encontros geracionais, e refletem a ideia de transformar a televisão num espaço de debate público sobre ética e sociedade. Acho que encontramos isso em comum” compartilha Luisa, comentando sobre o desejo comum de contribuir efetivamente nas questões que afetam a qualidade da vida social.
“Não queremos apenas fazer um thriller ou uma grande ação, mostrar que a sociedade é muito violenta e que se dane. Queremos abrir várias camadas para falar do psiquismo dessas pessoas, para falar de formação social, de algo que se repete como comportamento padrão na sociedade.”
O encontro com o Bravo! Foi, de certa forma, incomum. Além dos dois diretores, participaram também dois convidados especiais que contribuíram para a construção teórica da série: o psicanalista e o professor Christian Dunker e o escritor e filósofo Francisco Bosco. Ambos foram convidados pela equipe de produção da série para ler os roteiros e enriquecer o elenco e a equipe técnica com suas perspectivas sobre suas áreas de atuação.
Dunker foi o responsável pela análise da primeira fase da ficção. “Essa ideia de que existe um processo de agressividade, que evolui para a violência e culmina na destrutividade, foi muito bem representada e trabalhada como uma abordagem eficaz. Quando falamos em condomínio, temos inúmeras camadas: trabalhadores, fiscalização, todos interferindo na vida dos outros, hipertrofia das leis, e também a tríade preconceito, segregação e discriminação. Achei que a violência foi um corte que organizou muito bem todos esses elementos.” comenta o psicanalista.
“Acho que a violência é uma questão fundamental no Brasil. A dificuldade que o país enfrenta em se modernizar, em sentido estrito, de passar de uma semibarbárie, muito característica do mundo rural, para um Estado urbano onde deveriam prevalecer instituições e formas de mediação de conflitos, como o campo do direito , resumidamente. Este é um problema que permeia todo o arte e o pensamento brasileiro” complementos Francisco Bosco que foi convidado para aprofundar a discussão na segunda temporada.
Para ele, a série tornou-se um claro exemplo de como não sabemos lidar com situações de conflito, seja nas brigas entre vizinhos ou, num contexto mais amplo, na gestão da segurança pública de uma cidade.
“ Na primeira temporada, fica evidente como a falta de mediação de conflitos é um problema profundamente enraizado no coração de uma das maiores cidades do Brasil. A grande questão era como um evento relativamente trivial poderia adquirir proporções enormes. Este incidente poderia ter sido resolvido através da justiça restaurativa, tanto a nível individual como institucional. Mas nada disso aconteceu. O restaurativo falha porque as pessoas têm uma formação muito violenta, um inconsciente social. E quando começam as mediações, a situação só piora. O superintendente é corrupto, a polícia está ligada à milícia.”
Um dos grandes vilões da primeira temporada, Sérgio (Eduardo Sterblitch), ganha mais profundidade nesta nova fase, quando os diretores da série examinam a história desse personagem e a violência a que ele também foi submetido. “Na primeira temporada há um crescimento da milícia, à medida que ela aproveita, ela escala. Na segunda temporada, ele se torna o protagonista. Começa a partir do momento em que ele assume a trama e nos aprofundamos nesse homem malvado. E a gente entra nessa percepção de como ele foi criado, qual foi a sua relação familiar, onde ele sofre, o que ele sente, se a culpa é dele. Existe essa investigação humana dentro desse contexto social e de um tempo e de um Brasil” explica Luísa.
O perdão, que se destaca como tema central na nova temporada, é profundamente explorado por meio de dilemas emocionais que desafiam os personagens e seus relacionamentos, como analisa Francisco Bosco. “O grande tema da segunda temporada é o perdão, que é um assunto muito forte no universo evangélico. O perdão é uma categoria afetiva muito rara, que deve ser mobilizada em situações excepcionais. Em muitos conflitos da vida, as situações são resolvidas ou não pela categoria afetiva e retórica das desculpas. Eles são usados para todos os conflitos menores. Mas, para grandes conflitos que desencadeiam dinâmicas irreversíveis, é necessária a lógica do perdão. E esta temporada é muito sobre a possibilidade e a impossibilidade do perdão.”
Paralelamente, Dunker disseca as sutilezas do perdão, como um componente importante das relações humanas. “A dimensão do perdão tem uma anatomia. Existe o perdão que é justificação do pecado, que faz parte de um dispositivo de confissão, que não tem ação transformadora como processo. Isso é o que chamamos de reparação em Psicanálise, que envolve voltar atrás, a promessa de não fazer novamente. Sem este novo, o imperdoável continua a regressar circularmente.”
Um novo antagonista
Um dos maiores destaques da nova temporada, seja na atuação ou no que ela agrega à série, é Letícia Colin que interpreta Raquel, uma espécie de líder dentro do condomínio. Ela é uma das primeiras a manifestar seu descontentamento com a mudança de Sérgio e sua família e nada faz para camuflar esse sentimento.
Paralelamente, um dos conflitos pessoais de Raquel é o desejo de engravidar e constituir família com o marido, Paulo. “Raquel é vista como alguém que pode enfrentar o Sérgio. Ela também acredita nisso e sonha em constituir família, em seguir um caminho de perfeição. Ela vê esse objetivo como um guia a seguir, como o caminho certo. No condomínio Raquel é importante, pois é ela quem acalma, acolhe e aconselha. Porém, esse sonho fica cada vez mais distante, pois o casal enfrenta dificuldades para engravidar naturalmente.” reflete Letícia.
Raquel é o tipo de figura que exala confiança e com quem os outros se conectam facilmente. Porém, há uma dúvida constante em seu caráter, gerando dúvidas sobre suas verdadeiras intenções e caráter. “Acho que existem esses dois universos, o de dentro e o de fora, e isso traz tensão no meu trabalho enquanto estou ali interpretando a Raquel, porque preciso manter dois vetores o tempo todo. Quem está assistindo percebe que há algo dissonante na forma como ela se apresenta ao mundo, no que diz, no que pensa, no que quer fazer e sentir, em contraste com quem realmente é essa mulher na essência de do que ela vive internamente, do que ela vivencia dentro de si” acrescenta a atriz.