“Fiz todos os meus trabalhos com o único propósito de compensar minha incapacidade de viver, e eles apenas foram capazes de impedir que eu me afogasse”, refletia César Aira, com seu típico tom direto e de rica ironia, ao completar 50 anos, na novela Cumpleaños.
A verdade é que César Aira, hoje com 75 anos, fez disso um verdadeiro modus vivendi, publicando, ao longo da vida, mais de cem livros – às vezes, de três a quatro por ano.
Em uma edição mais do que caprichada, o Fósforo lançou recentemente o volume 1 da Coleção César Aira (552 págs. no total, 129, 90 reais), que reúne quatro títulos. A coleção contará, ao todo, com 16 livros do escritor argentino a serem publicados ao longo de quatro anos, em tradução de Joca Wolff e Paloma Vidal.
O mais antigo deles, A Prova (1992), é uma novela frontal, que tem um início brusco e direto: “Quer foder?”, perguntam à jovem Marcia duas meninas punk chamadas Mao e Lenin. De pronto, ela nega, mas é vencida pela curiosidade. O local escolhido é um supermercado, no qual a dupla garante a própria tranquilidade amedrontando e queimando clientes e, dessa forma, bloqueando o espaço.
Uma referência histórica aqui é clara. A Argentina viveu, no final dos anos 1980, uma hiperinflação destruidora, que trouxe um reboque um choque social que levou a saques de supermercados e de outros comércios. Foi então que se deu a interrupção antecipada do governo de Raúl Alfonsín e a chegada ao poder do controvertido Carlos Saúl Menem.
É esse clima de violência e revolta vívido pelo país que Aira evoca no romance. O contraponto é que a atitude vandalizada das meninas punk tem, no fundo, uma razão romântica: elas idade assim para fazer amor.
Outras chagas da época se fazem presentes no livro, como o empobrecimento acelerado da população; uma certa ideia de uma juventude nas ruas de que poderia não haver um amanhã – daí o fortalecimento de tribos confrontadoras, como a dos punks –; A forte ideologia do consumismo gerada pelas políticas neoliberais inculcadas pelo peronista Menem em seu princípio de gestão.
Outra marca da literatura de Aira que se deixa ver na pequena novela é a presença constante da classe média e de seus valores – sendo ele mesmo um representante dela.
Não por acaso, os cenários de seus livros são, em grande parte, sua cidade natal, Coronel Pringles, na província de Buenos Aires, e o bairro portenho de Flores, onde vive atualmente – ambos habitados por essa franja da população.
Outro título a destacar nesta primeira leva do pacote é O Vestido Rosa (1984), uma história bem humorada de um vestido que deveria ser entregue a uma menininha recém-nascida, na conturbada Argentina do século XIX.
Nessa época, o governo local empreendeu um verdadeiro massacre da população indígena que habitava o sul do país antes do descobrimento. A chamada Campanha do Deserto era, à altura, apresentada como uma luta entre a civilização e a barbárie. E o exército foi visto de modo heróico, como o vetor que livraria a Argentina desses povos tidos como selvagens.
O debate sobre a formação do país girou então em torno de como habitar e povoar o “deserto argentino”, que de deserto tinha muito pouco. Afinal de contas, nele habitavam diversas tribos indígenas.
O fato é que, no livro, o vestido da criança se perde, é comprado, passa pelas mãos de soldados, generais, gaúchos e criadores de gado. Na narrativa, personagens e passagens reais são misturados à trama fictícia.
Coleção César Aira. Ao longo dos próximos quatro anos, a Editora Fósforo lançará, ao todo, 16 livros do escritor
No fundo da obra reside a crítica à invisibilidade à qual foi relegada a população indígena, algo que até hoje é uma questão numa sociedade que, em geral, se crê apenas branca e europeia, mas que, na realidade, é muito mais diversa.
Já em O Congresso de Literatura (1997), Aira faz um exercício divertido, encarnando um escritor e tradutor que, num congresso de literatura em Mérida, tenta roubar uma célula do mexicano Carlos Fuentes (1928-2012) com o objetivo de cloná-lo . A ideia surrealista seria a de criar um exército de intelectuais como o autor de A Morte de Artemio Cruz e Aura.
Por fim, para completar essa primeira fornada, está Atos de Caridade (2013), em que três diferentes pais a cargo de uma paróquia levam adiante o projeto de construir uma enorme casa de caridade.
Acontece, porém, que o projeto se prolonga, a construção vai se tornando mais complicada, cheia de detalhes, enquanto a atenção deles para a pobreza – hoje um problema pontual no país, atingindo 55% da população – vai ficar em segundo plano.
São quatro livros que trazem amostras distintas de um escritor prolífico, hoje tido como um dos mais importantes ainda vivos na Argentina.
O conjunto é revelado de um autor que pode, em certa medida, parecer errático em suas escolhas, mas que, no fundo, é claramente movido por preocupações legítimas e escreve de modo espontâneo. •
Publicado na edição n° 1318 de CartaCapitalem 10 de julho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Escrever para não se afogar’