Palavras dadas
Aprendi cedo a ver a palavra como se pudesse tocá-la. Tratando-o como o mais concreto dos substantivos abstratos. Como mergulhei nisso de uma forma muito lúdica, criei um país só meu quando era pequeno. Claro, na minha frente. Palpável. Apesar das nocivas camadas racistas da obra de Monteiro Lobato, o seu livro “Emília no país da gramática” foi talvez decisivo para incutir em mim a ideia deste país imaginário das palavras. Um lindo lugar onde vivem verbos, pronomes, sujeitos, adjetivos. Fui criado numa casa onde a palavra cantada ou falada tinha poder, protagonismo. Eles eram descaradamente imaginários. E foi como se eu os visse. Como se estivessem caminhando. O meu pai, o excelente advogado revolucionário, Lino Gomes, personificava, humanizava todas as figuras de linguagem, por exemplo. E parecia que, se antes eu já tinha imaginado os substantivos com pernas, depois não foi nada difícil imaginá-los como senhoras: Dona Metáfora, Dona Hipérbole, Tia Metonímia ou Vovô Pleonasmo. Também desenvolvi uma imensa admiração pelos coletivos. Que chic! São palavras singulares que traduzem comunidades inteiras, representando-as. E não possuem o mesmo prefixo do objeto singular que aquela palavra designará no plural. Muitos peixes não são peixes, mas sim cardumes. Eu cresci correndo solto neste lindo país. Sou aquele ser estranho que adora análise sintática. Entendo e até fico comovido com a vulnerabilidade de uma oração subordinada e sua profunda dependência da oração principal.
Se pensarmos bem, a palavra é realmente um substantivo abstrato que tem poder de ação. E isso se torna concreto. Se alguém disser, bem perto da minha cara, que vai me dar um tapa na cara, posso revidar. Mesmo que eu não seja dado a espancamentos físicos. É que a palavra violenta dita tão de perto, queima o rosto, toca, fere, bate, tem o poder do gesto. Você consegue sentir, meu caro leitor, o conteúdo do que escrevo agora? Da mesma forma, se alguém me diz, bem perto da minha boca, que quer um beijo meu ou que vai me beijar… já é meio beijo. A palavra é onde o beijo começa. É a cabeça do gesto.
Dito isto, declarando aqui o meu amor humanístico pelas palavras, confesso a minha alegria espalhada nesta página ao abrirmos hoje esta coluna que nasce neste inverno honesto. Frio. Coerente. Honroso. E numa revista que sempre admirei. Grande dia hoje. Há felicidade em mim. Estou apaixonada por essa estreia. Aproveito o Gênesis descrito acima para olhar a vida cotidiana através dos olhos de literatura
vivo. Uma certa oralidade é tão antiga em minha alma que gerou em minha mente um caderno de pensamentos onde um certo jornalismo poético, um certo cronista de prosa e verso e ao mesmo tempo menestrel, anota todos os dias a experiência do que vive, experiências, riscos, medo, veja.
Tem aqui um caderno de mil folhas, muito mais. Infinito e virtual, tenho-o exposto e bem guardado na nuvem da minha cabeça, o céu interior, a tela através da qual espio e anoto os acontecimentos.
Como fui exposto desde muito cedo ao colo lírico da poesia, acostumei-me desde muito jovem a achar a palavra mágica. Vendo ela. A palavra janela pinta uma janela imediatamente na mente, geralmente azul. Ou amarelo. A poesia é a maior tradutora da realidade tridimensional, por isso transmite o seu conteúdo a todo o lado. Entrega. Realizar transporte. Sua tarefa é derramar um crepúsculo com toda sua sofisticada paleta de cores em uma simples página branca com suas linhas aparentemente monótonas. De repente, o poema se organiza e aquele laranjal de brilho arde em nossos rostos. O poeta captura nosso coração. Ele guardava um pôr do sol dentro de um livro e brilhava à noite.

A fome, o parto, a morte, a guerra, a miséria, a maldade, o amor, a natureza, a saudade, tudo isso me foi revelado primeiro pela horda de poetas. Foram eles e suas resmas que pintaram palavras para descrever de forma tão palpável dores, vitórias, esperanças, feridas, encontros e despedidas, que é como se a memória dos poemas que guardo em mim desde a infância, não fossem poemas, mas histórias vividas, aconteceram comigo. Eu sei que não é. Esta é uma coleção adquirida. Mas eles vivem aqui com a mesma textura do filme dos sonhos, então parece que eu os vivi.
Tamanha confluência na vida da minha menina fez nascer esses bilhetes, esse banco, essa escrivaninha que tenho em mente, anotando opiniões que acredito que poderão ser consideradas pelo mundo quando saírem daqui. Não quero me omitir. Eu não acho que ninguém deveria fazer isso. Muitos males são denunciados, investigados e evitados devido ao fim do silêncio das vítimas que protegiam o agressor. Muitas vezes, não tomar posição é uma omissão, com consequências até trágicas. É atitude. Pode significar que não me importo. E isso é desprezar seu irmão. Não é natural não dizer o que você pensa, eu acho. Falaríamos se não fosse por medo, por medo de sermos julgados, por medo de nos metermos em encrencas. O problema é que o silêncio também pode levar outros a nos confundirem com vilões. Se eu fosse um homem e um homem hétero, me apressaria em mostrar logo para a mulher que não sou aquele idiota da quinta série, que não sou um abusador, me apressaria em deixar claro que condeno quando meus colegas matam seus companheiros e que sou incapaz de machucá-la. Da mesma forma, se eu fosse branco também daria um passo à frente para não ser confundido com uma pessoa racista. Seria muito humilhante. Tentaria educar-me, para colmatar o défice que existe na educação oficial ocidental da minha geração e das gerações que a precederam, nas quais fomos reduzidos a um conhecimento europeu restrito dominando o ensino. Buscaria a alfabetização racial e me inspecionaria intelectual e emocionalmente para ver se não estou reproduzindo em palavras, hábitos, costumes, bolhas, ações e omissões, o racismo que pretendo combater. Seria bom se eu não trouxesse para minha casa os costumes da casa grande, de explorar as pessoas, maltratar e ofender. Por isso, aproveito este encontro quinzenal como plataforma, lugar para compartilhar tais digressões, tais reflexões despretensiosas, páginas deste caderno que talvez possam servir pelo menos como testemunhas de uma época e de suas nuances.
Tudo vai se acalmar. É bom anotar o que importa. Será chamada de memória se puder ir mais longe. A nossa impressão digital, ou seja, a impressão das marcas que fazem o desenho na pele dos nossos dedos, conta no final. Cada um sendo diferente aumenta a variedade de contribuições de visões sobre o mesmo mundo. Expande a visão. Então está combinado. Poderá encontrar aqui um poema, uma crónica, uma prosa em forma de diário, ou mesmo um poema em forma de canção.
Não importa, sempre será meu caderno sincero e aberto aqui para a alegria de todos que vierem aqui beber.
Quem olha para tudo e escreve sobre isso acredita nas palavras como companheiras e que, vivas como estão, podem produzir epifanias, novas sinapses, revoluções. Isso acontece comigo. Muitos autores iluminaram e continuam iluminando toda a minha vida. Eles sabem como mover as palavras. A magia depende da escolha deles, do tipo de agrupamento, da direção que o tecido toma para produzir o encantamento. Enfim, o que eu sei? Escrever é iluminar uma estrada escura com uma lanterna, esculpir uma partitura, um caminho de símbolos, linhas, significados onde antes não havia nada, e você literalmente faz o caminho enquanto caminha.
Sempre considerei a literatura como o arte
para me dar prazer. Tanto como seu produtor quanto como leitor. Sempre gostei que meus pais, professores, professores da vida, livros, escola, amigos e músicas me contassem histórias. Depois TV, filmes, séries, teatros. Esse pacote de enredos me distrai, me acalma, me representa, me diverte. As revelações e preocupações de uma pessoa podem explicar as coisas. Surgem questões com a liberdade das ficções. Vá longe.
Aqui, de agora em diante, me correspondo diretamente com você, meu conceituado leitor, meu querido destinatário de segunda-feira.
Para mim, escrever histórias, contar histórias, piadas, fotografar impressões em forma de poemas, contos, crônicas e romances é uma condição condição sine qua non
de sobrevivência.
E como isso traz prazer! Eu não sacrifico nada. É um bom trabalho. Tornou-se uma forma de olhar a vida, um observatório permanente cujo relato se dá em forma de arte.
A escritora raramente é tratada como artista: “Eliana Alvez Cruz lança hoje seu mais novo livro. O artista estará no espaço cultural…” Nunca vi essa notícia dita dessa forma. Mesmo sabendo que não basta ser alfabetizado para ser escritor, ainda esquecemos que somos artistas, sem contar que existem vários casos de escritores analfabetos e de grandes compositores com pouco ou nenhum estudo formal. Mistério. Porém, acho bom refletir sobre esse lindo ofício. Uma coisa importante em qualquer profissão é que ela pode nascer de um dom. Então, ganhar dinheiro com isso realmente se torna uma bênção. Um machado. Adoro fazer isso e eles ainda me pagam?! Esta deveria ser a base lógica do mercado de trabalho.
Quando me perguntam se escrever custa ou me sacrifica, digo que não, porque realmente sinto que tenho essa capacidade. E habilidade é uma tendência, uma facilidade, uma inclinação. Isso inevitavelmente leva você ao centro gravitacional do presente.
Escrevo com a alma, com o corpo, com as minhas ideias, com a minha emoção, com a história colectiva que me constitui, com a minha memória e com a esperança de ajudar a melhorar o jardim do mundo de onde brotamos incessantemente.
Aqui neste caderno que carrego na cabeça, escrevo em pensamento sem esforço o que vejo. Quieto. Mudar. Ninguém sabe que há uma mesa aqui. Um caderno silencioso e volumoso que não ocupa espaço físico porque possui uma presença luminosa que só ganha forma quando acessado. Assim como um grande tabuleiro na mesa da vida, cada palavra é uma carta do jogo. Na primeira segunda-feira de cada mês colocarei minhas cartas na mesa aqui no jogo dos caminhos abertos e a leitura delas é democrática. Dependerá de qual olho o lê.
Será uma conversa baseada nesta palestra. Afinal, escrever é uma forma lírica de não morrer cedendo.
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Elisa Lucinda, agosto inverno sobre tudo, 2024.