O conhecimento das características das pessoas que chegam aos 100 anos com sua saúde e disposição é uma área de crescente interesse na ciência. No laboratório de pesquisa que coordeno na Universidade de São Paulo (USP), o Centro de Estudos do Genoma Humano e Células-Tronco, estudamos centenários saudáveis e um grupo de supercentenários – pessoas com mais de 110 anos – em busca de genes que determinem a sua excepcional longevidade. Queremos saber o que estes genes regulam no organismo destes idosos e como isso contribui para um envelhecimento sem doenças.
Entre os participantes do projeto, encontramos exemplos notáveis de vitalidade. Laura, de 105 anos, começou a nadar aos 70 anos. Ela tem a agilidade de uma menina e excelente capacidade cognitiva. Em vez de perder força muscular ao longo do tempo, como esperado, ela ganhou músculos. Por que? O que há de diferente nos músculos e genes de Laura?
Outro voluntário é Milton, de Brasília (DF), hoje com 108 anos, veterinário que acompanha e comenta conosco todos os avanços científicos. Assim que soube do nosso projeto com centenários, nos escreveu sobre seu interesse em participar. No ano passado, em sua festa de 107 anos, Milton relembrou como cada convidado teve um papel importante em sua carreira. O que protege sua capacidade cognitiva? Queremos saber mais sobre seus neurônios.
Aos 106 anos, José Bernardo, mineiro, trabalha em supermercado guardando carrinhos e cestas. Aparentemente, ela é a pessoa mais velha com carteira registrada no Brasil. Um excelente funcionário, segundo o proprietário do estabelecimento. De onde vem tanta disposição?
A irmã Teresiana Inah Canabarro, que mora em um convento em Porto Alegre, é um dos supercentenários que estudamos. Nesta Páscoa ela nos contou que adora chocolate, odeia banana e que dirigiu uma banda musical com a qual viajou por todos os países da América Latina. Com alguma dificuldade, ela consegue escrever e se preocupa com a grafia correta dos nomes. Ela perguntou se Mayana estava escrita com i ou com y. Como ela chegou a essa idade com uma mente tão boa?
Além de entrevistar essas pessoas e suas famílias para conhecer sua trajetória e estilo de vida, coletamos amostras de sangue desses centenários para sequenciar seu genoma.
Uma particularidade do estudo em andamento na USP, que provavelmente o torna único no mundo, é que derivamos diferentes tipos de linhagens celulares a partir de amostras biológicas de sangue. Ou seja, somos capazes de reprogramar células sanguíneas (eritroblastos) em células estaminais embrionárias e a partir daí transformá-las em células musculares, ósseas ou nervosas, entre outras, para estudar as suas especificidades.
As amostras de Milton, por exemplo, deram origem a um organoide celular (um minicérebro cultivado em laboratório) para estudar ainda mais seus neurônios. Outras equipes em colaboração conosco estudarão essas linhagens celulares para avaliar suas mitocôndrias (uma espécie de usina de energia celular) e o reparo do DNA.
Pesquisa brasileira
Começamos a coletar amostras de centenários pouco antes da pandemia. Com a chegada do COVID-19, pudemos estudar um grupo de 100 pessoas com mais de 90 anos que foram curados da infecção causada pelo vírus SARS-CoV-2 ou foram expostos e permaneceram assintomáticos. Entre eles, estavam 20 centenários (como Laura e Milton), incluindo três pessoas com mais de 110 anos.
Um dos focos do nosso estudo é compreender os chamados “genes protetores”, que se tornam mais influentes à medida que as pessoas envelhecem. Já identificamos vários deles nesses indivíduos que mostraram resistência à COVID-19, muitas vezes apresentando sintomas leves ou ausentes. Estamos agora a explorar como estes genes contribuem para esta resiliência e para uma saúde melhor do que o esperado.
Descobrimos, por exemplo, que uma variante genética no Gene MUC22, responsável pela produção de mucina, foi duas vezes mais comum neste grupo e pode ser um fator de proteção. Outros estudos internacionais encontraram fatores mais protetores, como a presença de variantes em dois genes mais frequentes em pessoas com mais de 105 anos que atuam nos mecanismos de reparo do DNA, conjunto de processos pelos quais a célula identifica e corrige danos a este molécula.
À medida que envelhecemos, estes mecanismos de reparação tornam-se menos eficientes, o que tem consequências. Quando o dano ao genoma da célula não é reparado, ela pode entrar em dormência (fenômeno também conhecido como senescência), morte (ou apoptose) ou processo de carcinogênese. Em idosos saudáveis, os mecanismos de reparação continuam a funcionar muito bem. O truque é saber como agem os genes relacionados a esse processo.
Nossa pesquisa também explorou a complexidade das redes genéticas envolvidas no processo de envelhecimento. O envelhecimento não é algo que depende de um único gene; é o resultado de uma interação complexa entre múltiplos genes, proteínas e vias metabólicas. Procuramos compreender como essas interações afetam o envelhecimento e como esses processos podem ser manipulados para melhorar a saúde na velhice.
Meio ambiente e comportamento
Existem descobertas mais interessantes. Uma delas é o maior conhecimento da influência dos fatores ambientais e comportamentais na saúde e na longevidade. Vimos que, nos idosos com mais de 90 anos, os fatores ambientais e comportamentais têm menos impacto do que entre os mais jovens, enquanto o peso da genética é cada vez maior, podendo chegar a 80%.
Se, por um lado, o envelhecimento saudável depende de uma alimentação adequada, de atividade física, de não excesso de peso e de pouco stress, à medida que as pessoas envelhecem, a genética passa a desempenhar um papel cada vez mais importante.
Tanto é que pesquisas com centenários de Nir Barzilainos Estados Unidos, mostrou que cerca de 60% dos superidosos (aqueles com mais de 110 anos) estão acima do peso, muitos fumaram a vida inteira e nunca fizeram exercícios.
Ao mesmo tempo, a comparação de dados genéticos e de estilo de vida de centenários em diversas regiões, incluindo Zonas Azuis – áreas conhecidas pela elevada taxa de longevidade –, revela que os locais onde há mais pessoas que atingem e ultrapassam os cem anos de idade são aqueles onde a alimentação é rica em vegetais e isenta de alimentos ultraprocessados, as pessoas praticam exercício e cultivam a família e vida comunitária.
Também investigamos como as modificações epigenéticas (área que pesquisa alterações no DNA responsáveis por ativar ou silenciar genes) influenciam a longevidade e como podem ser transmitidas às próximas gerações.
No futuro, a compreensão desses mecanismos poderá revelar estratégias para ativar fatores genéticos de longevidade sem implicar necessariamente alterações nos genes através da edição genética, por exemplo.
À medida que avançamos Ao compreender os fatores que influenciam a longevidade, também enfrentamos questões éticas e sociais. Precisamos de nos interrogar sobre as implicações do prolongamento da vida humana, desde o impacto nos sistemas de saúde e de segurança social até às desigualdades no acesso às terapias anti-envelhecimento. Promover um debate aberto e inclusivo sobre estes temas é essencial para garantir que os avanços na longevidade beneficiem toda a sociedade.
Ainda há muito a ser descoberto. Nossa busca por centenários saudáveis continua, cada um deles fornecendo percepções valioso através de suas histórias de vida e dados genéticos.
Segundo o Censo 2022, o Brasil tem mais de 37 mil centenários espalhados pelo país. Pessoas interessadas em participar desta pesquisa pode enviar relatório para o e-mail [email protected].
Mayana ZatzGeneticista e coordenador do Laboratório de Doenças Neuromusculares e Centro de Estudos do Genoma Humano e Células-Tronco, Universidade de São Paulo (USP)