“A única diferença entre uma pessoa louca e eu é que não sou louco.”
Assim Salvador Dalí
(1904-1989) se definiu. O principal expoente do surrealismo nas artes visuais dizia ser capaz de criar associações entre fatos e imagens que nada teriam a ver com lógica — o que é muito diferente do diagnóstico psiquiátrico de loucura, aliás.
Ao buscar a não racionalidade, o artista marcou a história da arte
com incursões em desejos inconscientes retratados de forma quase fotográfica. Dalí estava ciente de sua genialidade. Ele considerava seu trabalho anti-arte, livre de “considerações plásticas e outras bobagens”.
Preocupado com sua imagem, nunca se apresentou em público como “civil”,
mas com o seu “Uniforme Daliniano”
: o bigode enrolado para cima e as roupas ostensivamente elegantes.
Essa imagem irônica, somada à sua aversão à política, provocaria sua expulsão do movimento surrealista em 1936. O artista ingressou no grupo em 1929. Influenciado pelas teorias psicanalíticas do austríaco
Sigmund Freud
o movimento procurou explorar a psique na arte, abrangendo os sonhos e o inconsciente.
Um emblema desse movimento em direção ao onírico é a pintura
A Persistência da Memória
(1931), conhecido como “a pintura de relógios derretidos”
. Os relógios, instrumentos mecânicos e rígidos, refletem a passagem do tempo. Ao dar-lhes formas fluidas e orgânicas, o pintor transporta-os para um universo de prazer, realçando a fugacidade da memória. As formigas – recorrentes em suas pinturas como símbolo da decadência – atacam o único relógio que ainda parece sólido.
A cabeça adormecida no centro é interpretada como um perfil distorcido do pintor. A paisagem ao fundo, uma de suas lembranças de infância, confere ao conjunto um ar de verossimilhança, conferindo ao sonho uma aparência tangível. O óleo sobre tela é marcado pela meticulosidade técnica.
Dalí procurou, através do cuidado com as formas e da representação meticulosa dos detalhes, criar uma atmosfera realista. Ele via a pintura como “uma fotografia à mão e a cores”
. Ao conciliar o clássico com a arte de vanguarda, portanto, sua tendência surrealista se manifesta não pela técnica, mas pelos temas trabalhados: violência, erotismo e sonhos.
*Este texto faz parte do especial “100 obras essenciais da pintura mundial” e foi publicado originalmente na edição impressa da Revista Bravo! em 2009