“A escultura, o corpo humano e o espectador são os três pontos fundamentais de pensamento que norteiam o meu guarda-chuva de interesses criativos”, explica Ana Mazzei quando questionada sobre qual seria a marca registrada do seu trabalho, que por vezes mistura arte com literatura
às vezes com dança, às vezes com cinema. Sua obra, em muitas ocasiões, responde ao legado dos movimentos modernistas tardios no Brasil, especialmente das vanguardas neoconcretas.
“Me interessa o som, o movimento, o posicionamento do espectador diante da obra, o caminho que ele percorre para se aproximar da obra. O teatro
Parece-me quase um dispositivo, um fenómeno de apresentação do meu próprio trabalho. Faço instalações, esculturas, ocupações, sempre pensando, principalmente, na relação com quem está assistindo. Não tenho nenhuma pergunta relacionada à dramaturgia. Embora muitas vezes, para iniciar um projeto, comece escrevendo uma história, uma narrativa que depois se transforma em escultura ou performance.”
Formada em artes visuais pela Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) e mestre em Poéticas Visuais pela UNICAMP, Mazzei participou do Programa de Estudos Independentes da Escola São Paulo (PIESP) dirigido por Adriano Pedrosa e, durante seu processo acadêmico, surgiu uma dúvida que impulsionou a parte de sua produção autoral que está em importantes coleções ao redor do mundo. “Estudei fotografia do século XIX e construções teatrais mais ligadas ao tableau vivant, tive muito interesse nisso, principalmente aquela ideia do século XIX, de montar e criar uma cena, achei maravilhoso. Eu brinco um pouco fazendo isso através dos meus trabalhos. Gosto de construir a cena, pensar e digerir uma cena, mas não gosto de estar na cena.”
Foi também na academia que percebeu a dificuldade dos cruzamentos entre diferentes áreas das artes, como dança, literatura, cinema e teatro. “Essas trocas são muitas vezes impossibilitadas por um certo purismo por parte de determinados setores. Eu queria me aprofundar nesse assunto. Por isso o meu trabalho acontece na retina, mas também acontece no contato com o corpo e outras presenças mais sinestésicas”, diz ela, que hoje também é professora de história da arte
e encontra os ideais de Paulo Freire e Augusto Boal como meio de organização social.
A pesquisa de Mazzei começa sempre com o auxílio de um caderno de desenho e tem como cerne o retrato conceitual da encenação por meio de formas geométricas, onde o público é peça fundamental na investigação da ideia e da fantasia da representação. À medida que a artista avançava na sua investigação, este assunto ganhava uma dimensão maior: “O trabalho da Ana tem um vigor singular. Temos clientes que esperam quase dois anos para poder comprar uma de suas obras. Tudo isso foi uma construção com ritmo trazido pela própria artista, que é muito comprometida com a produção em termos de pesquisa e desenvolvimento. Encontrar o material certo para cada tipo de trabalho que ela imagina. Sua produção é profundamente contemporânea. Não porque seja atual para ‘hoje’. Mas sim, para a nossa linha de arte brasileira do século XXI. É uma grande ópera!”, define a galerista Jaqueline Martins, que representa a artista há 10 anos.
Não é por acaso que uma das suas obras mais emblemáticas leva o título “Espetáculo”. Apresentado em 2016, foi um dos destaques da 32ª Bienal de São Paulo e chamou a atenção do público pela escala e conjunto de molduras de madeira em diferentes alturas.
“Apresentei um desenho desse projeto para a curadoria, mas nunca tinha feito um trabalho nessa escala, com essa quantidade de elementos eram mais de 80 peças, com mais de 4 metros de altura por 13 metros de comprimento. Pensei muito na relação que o espectador estabelece dentro de um espaço de design amplo e aberto. E queria propor esse look longo com escrita quase hieroglífica. Trabalhei muito com a questão da frontalidade, da organização espacial e de um desenho que fosse um desenho arredondado no formato de ¼ do globo. Queria que o público passasse pelo prédio e parasse para ver a obra. Queria conduzir esse look na frente desse semicírculo. E para liderar essa visão, o trabalho precisava chamar a atenção. Pausa é uma raridade em nosso tempo”, argumenta.
Além das feiras de arte de Basileia e Frieze, que foram fundamentais para a internacionalização do seu trabalho na Europa e nos Estados Unidos, respetivamente, outro momento que foi um divisor de águas foi a criação de “Garabandal: Morte, Ascensão e Êxtase”, exposta no Tomie Ohtake em 2016, e na 14ª Bienal de Cuenca – Estruturas Vivas, em 2018. “Era uma espécie de cadeira-escultura e quando você se sentava impunha uma postura associada aos estudos antigos sobre as mulheres em êxtase. Ela fala do sagrado e do profano de forma particular e agregadora. Foi a partir daí que o público pôde se aproximar ainda mais do que ela propunha”, explica Martins. A artista destaca ainda a exposição “Vesúvius” — apresentada em 2020 na Galeria Jaqueline Martins — como um marco em sua carreira justamente pela proximidade com o contexto pandêmico e também por abranger as diversas frentes de seu trabalho. “É muito importante para mim porque conduz visualmente a partir desta composição de linhas e formas.”
Multidisciplinar, Mazzei explora pintura em tecido, escultura em bronze, realiza filmes, obras sonoras e até coreografa performances de dança
. Os títulos das obras de Mazzei não são descritivos ou óbvios, mas são inseparáveis da obra. Na verdade, título e obra se complementam e se tornam um só. “Quando invento títulos para meus trabalhos, procuro sempre aqueles que possam ser o nome de uma padaria ou de um motel.” Todos esses meios e técnicas estão sendo pensados e desenvolvidos dentro do seu núcleo mais importante: a história da representação e esse grande palco onde a vida se organiza.
O título de sua primeira exposição individual na novíssima Martins&Montero — fusão das galerias Sé e Jaqueline Martins — já está definido: Cena de Jardim e foi inspirado na última viagem da artista a Nápoles, na Itália. “Decidi ocupar todo o exterior da galeria, pensando até nesta nova possibilidade de uma nova sede com um generoso jardim que possa acolher obras”
Mazzei já faz esboços de obras em bronze, mais madeira maciça, para que resistam ao tempo. Ela acrescenta ainda que está realizando os primeiros estudos concretos. Jaqueline Martins também deu pistas sobre o que poderemos encontrar a partir de outubro na nova sede da galeria. “Ficaremos surpresos tanto em escala quanto em poética. Ana é uma artista muito madura em termos de dinâmica e capaz de antecipar as questões práticas e conceituais do projeto. Ela está propondo uma espécie de distração estimulante – no melhor sentido da palavra – para o mundo. Muito lindamente, esta exposição vai mostrar aquela capacidade única que só os grandes artistas do seu tempo são capazes de ter: investigar o mesmo assunto, mas nunca se repetir.”