Na década de 1960, em Cachoeira, Recôncavo da Bahia, o barbeiro Boaventura da Silva Filho (1932 -1992) começou a fazer esculturas em madeira e a colocá-las na vitrine de seu estabelecimento. Quando um grupo de freiras passou pelo local com seus alunos, disseram-lhes que aquelas esculturas eram coisas “malucas”. Boaventura decidiu adotar o apelido e seguir a carreira de escultor.
Desde os 7 anos, seu filho Celestino Gama o ajuda a finalizar as obras. Também se tornou escultor e adotou o nome artístico de Louco Filho. Agora, obras dele e do pai estão entre as 750 peças de dezenas de artistas baianos, pernambucanos e cearenses que serão repatriadas a partir do ano que vem pelo Museu Nacional de Cultura Afro-Brasileira (Muncab), em Salvador.
“São obras de formatos diferentes, de técnicas diferentes, então há uma diversidade muito grande”, afirma a codiretora do Muncab, Jamile Coelho.
Esta é a mais numerosa repatriação de obras brasileiras que se conhece. Quase todas criadas por artistas negros em diálogo com a cultura afro-brasileira, as peças datam de um período que vai da década de 1960 ao início do século XXI. Incluem pinturas, esculturas, trajes, arte sacra e ritualização do sagrado.
Esse grande processo de repatriação começou graças a uma iniciativa de duas colecionadoras norte-americanas: a historiadora de arte Marion Jackson e a artista plástica Barbara Cervenka, que adquiriram as obras em visitas periódicas à Bahia desde 1992. A partir de 2019, as duas visitaram diversas instituições até escolherem Muncab como destino. para devolver a coleção que haviam reunido.
“Os artistas estão muito felizes. Seu José Adário, por exemplo, é um dos últimos artesãos de paramentos e utensílios para candomblé e orixás. Nesta coleção temos 17 obras suas, e em formatos que ele não produz mais”, explica Jamile Coelho. O artista de 77 anos fabrica portões, agogôs e ferramentas de santo há mais de seis décadas.
Obras de José Adário também fazem parte do acervo repatriado. Foto: Adenor Gondim/Divulgação/Muncab/
“Normalmente, os colecionadores só compram de artistas falecidos. Achei fantástico que comprassem muitas das nossas obras, fizessem exposições e nos divulgassem”, afirma Raimundo Bida, autor das obras ingênuo que também será repatriado.
Nas últimas três décadas, Marion e Barbara expuseram nos Estados Unidos e no Canadá o acervo que adquiriram de artistas brasileiros.
“Eles frequentavam muito a minha loja no Pelourinho. Conversamos diversas vezes, eles tentaram saber mais sobre nós”, conta o designer Goya Lopes, que terá duas peças repatriadas, sobre as constantes visitas dos dois colecionadores ao Centro Histórico de Salvador.
Movimento pela repatriação de obras cresce no mundo
No dia 12 de setembro, no Rio de Janeiro, uma cerimônia marcou a histórica repatriação do manto Tupinambá ao Brasil após 335 anos. A peça, que estava num museu na Dinamarca, regressou ao Brasil em julho, num momento em que vários países do mundo exigem a devolução de peças levadas para a Europa num contexto imperialista.
“Repatriar, devolver esse material, tem a ver com o processo de reparação histórica que a colonização provocou. Esse material foi roubado, foi pilhado, foi retirado de seus lugares assim como as próprias pessoas foram retiradas e objetificadas, transformadas em mercadoria. Repatriar é um ganho político para quem retorna e é uma reparação histórica para as pessoas que foram vilipendiadas”, afirma o antropólogo Marlon Marcos, professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB).
Em 2020, após o assassinato de George Floyd, um homem negro que foi cruelmente asfixiado por um policial branco em Minneapolis, nos Estados Unidos, manifestações de protesto organizadas pelo movimento Black Lives Matter fizeram com que o debate sobre a equidade racial também impactasse os mercados econômicos.
No mercado das artes contemporâneas, o apelo destas manifestações à reparação histórica levou museus e colecionadores de todo o mundo a refletir sobre o retorno das obras aos seus países de origem.
“Esses movimentos sempre existiram. Mas agora, devido ao crescimento político e económico das populações negras, esta denúncia e esta luta têm sido mais tête-à-tête. Foram construídas novas leituras de mundo que fazem com que os museus dos Estados Unidos e da Europa sintam uma certa vergonha”, explica Marcos.
Muncab planeja exposição com obras repatriadas
Embora a documentação legal já tenha sido assinada, a repatriação das 750 obras que chegarão ao Muncab não é imediata devido ao complexo processo de preservação do acervo. Uma equipe do museu irá a Detroit, nos Estados Unidos, para estudar a melhor logística possível para a transferência para Salvador.
Mudanças bruscas de temperatura podem causar danos irreversíveis ao material, que deve ser devidamente climatizado. Um estudo técnico definirá se as peças virão em lote. Para a repatriação, a Muncab conta com a parceria do Instituto Ibirapitanga e da Con/Vida, organização dedicada à cultura, tradição e história das Américas fundada por Marion Jackson e Barbara Cervenka.
Muncab pretende abrir a exposição da nova coleção com a presença de artistas e colecionadores.
Foto: Reprodução/Redes Sociais/Muncab
“Discutimos muito o processo de repatriação de obras que foram roubadas de seus países de origem. Mas essas obras vêm com uma abordagem diferente, com um olhar curatorial e sensível de Bárbara e Marian. Levaram as obras para os Estados Unidos e, também com olhar sensível, perceberam a importância desse retorno”, afirma Jamile Coelho.
Quando as obras chegarem, Muncab pretende abrir uma exposição com a presença de artistas e colecionadores.
“Será um momento mágico e fantástico, não só para mim, mas para todos verem como era a efervescência cultural dos anos 80 e 90 no Centro Histórico de Salvador”, comemora o artista Raimundo Bida. “O que mais me emociona é que os artistas que vão expor foram importantes para mim e alguns já não estão mais aqui”, acrescenta.
Inaugurado em 2011, liderado pelo poeta tropicalista Capinan, que teve ao seu lado nomes como o do artista plástico Emanoel Araujo (1940-2022), o Muncab foi reaberto em novembro do ano passado, após três anos fechado, recebendo cerca de 150 mil visitantes naquele ano. . nova fase.
A intenção da direção do museu é também emprestar parte do material repatriado para instituições do Brasil e do mundo, para que as obras possam ser divulgadas e estudadas. “A arte negra brasileira não está nas escolas de arte. É fundamental levantarmos esse debate sobre a produção intelectual desses artistas que produziram obras magníficas e que ainda são qualificadas como arte popular”, afirma Coelho.