Um festival que une línguas e territórios, numa experiência de arte
e conexão mais pura com a natureza. Já se passaram 22 anos desde que a Fazenda Serrinha, em Bragança Paulista, imprimiu novos capítulos na história da arte com o Festival de Arte da Serrinha
. Sempre baseado em residências únicas, resistência e, como convém ao universo artístico, resiliência, o evento leva os artistas para fora do espaço urbano e convida o público a descobrir novas produções feitas a partir das provocações do próprio território.
Este ano fica marcado por uma parceria inédita com o necessário e renovado Museu da Língua Portuguesa, orientando a curadoria numa escolha que reflete e celebra exatamente a língua que une as nações brasileiras, portuguesas e africanas. Desta vez, o idealizador do festival, Fabio Delduque, convidou o português Carlos Antunes, da Bienal de Coimbra, e o angolano Mehak, da Galeria Jahmek Arte Contemporânea, para assinarem com ele a curadoria da residência artística. Pautada pelo tema “Atlântica”, a equipe traz uma transposição de distâncias oceânicas e atividades artísticas em música
artes visuais, artes plásticas, gastronomia, moda e dança.
Para absorver o ar das montanhas e as vivências nas terras reflorestadas, antes ocupadas por pastagens, foram convidados os angolanos Wyssolela Moreira e Gegé M’bakudi, os portugueses Inês Moura e Jorge das Neves e os brasileiros Jonathas de Andrade e Shirley Paes Leme . Inspirados pela urgência ambiental e artística provocada na quinta, desenvolveram obras que, em 2025, deverão integrar uma exposição temporária no Museu parceiro dedicada à nossa linguagem comum.
Residências que provocam
Munida de inúmeros gravetos recolhidos pela fazenda, a artista Shirley Paes Leme buscava inspiração para fazer uma escada que nos levaria ao céu. “O mundo nos provoca. E quando provocados, respondemos. Este é o papel do artista. Inventamos coisas que não existem. E é essa provocação em mim que retribuo ao mundo”, reflete Shirley, cujo trabalho é permeado por questões relacionadas à ecologia. “Temos uma urgência brutal no planeta. Temos que fazer alguma coisa porque não sobreviveremos.”
Jorge das Neves, pela primeira vez no Brasil, era como uma esponja, ainda absorvendo as possibilidades. “Acho que mais do que cuidar da terra é cuidar dos homens. Porque cuidando dos homens, acho que cuidamos da terra. Acho que se todos cuidarmos uns dos outros, em última análise, o planeta vencerá.”
Ligada há anos às terras brasileiras, Inês Moura trabalha com a ideia de duas identidades unidas e separadas pelo Oceano Atlântico. “Há muitas coisas que eu não tinha ideia antes de vir para este lado do oceano. Tenho muita pena de haver coisas que vim descobrir aqui sobre mim, seja a minha espiritualidade, seja o lado mais corporal da entrega ao mundo”, afirma. “Esse Atlântico já foi trabalhado por mim muitas vezes, em outras obras, como uma mancha de água, como esse corpo líquido que divide esses dois países”.
Outra artista que está em sua primeira visita ao Brasil é a angolana Wyssolela Moreira, que investiga cosmologias indígenas nos territórios entre a África e a América. “A relação entre Angola e Brasil sempre foi tão grande, muito maior do que penso que os brasileiros imaginam. Sempre consumimos muitas coisas que vêm de solo brasileiro. A mídia, a música, tudo. E o consumo que a gente faz do que é brasileiro agora, nesta era contemporânea, é muito interessante, comparado ao consumo que o Brasil tem do que é de Angola”.
Ela diz que seu trabalho permeia a ancestralidade e a relação cosmocientífica de como os indígenas africanos se veem e ao seu entorno. “Devido ao contexto histórico de Angola e à forma como se deu a colonização no país, há uma questão de identidade muito grande. A forma como as pessoas são aculturadas é muito eurocêntrica. E o problema não é só adquirir o que é eurocêntrico, mas esquecer o que é africano, o que é seu”.
Wyssolela vê os brasileiros como muito mais livres, mais abertos e realizados. “Quando você olha pela perspectiva cosmológica, a partir do conhecimento indígena, tudo está ligado ao seu ser e a quem você é. E a sua participação no coletivo, na natureza. Considero meu trabalho um trabalho de descolonização, com certeza. Porque é um trabalho de busca, de redescoberta, de memória. Estou me reencontrando de várias maneiras e convidando as pessoas ao meu redor a fazerem a mesma coisa.”
Serrinha nos abraça
A impressão da Fazenda Serrinha é de tirar o fôlego. O ar que se mostrava insalubre nos termômetros de São Paulo já entrava nos pulmões por outra via. No gramado, jovens artistas do dança
com Morena Nascimento, eles se espalharam ao sol antes de voltarem aos ensaios.
Durante 20 dias em julho, eles se juntaram a muitos outros que embarcaram na pesquisa em artes visuais ao lado de Virginia Medeiros; gastronomia com Morena Leite; moda com Dudu Bertholini; pintura com Dudi Maia Rosa; de música com Jaques Morelenbaum. A mesa também foi completada por bolsistas da Ocupação Nove de Julho e do Núcleo Luz, convidados a vivenciar e produzir a partir dessas diversas conexões.
Caminhando pelos gramados cercados por uma floresta cuidadosamente recriada – que ganhou até título de Reserva Particular do Patrimônio Natural –, instalações e esculturas de importantes artistas são acomodadas em meio à folhagem. Entre eles, “A grande espiral”, de Bené Fonteles, numa referência ao famoso Spiral Jetty de Robert Smithson, que inaugurou a ideia de museu ao ar livre, ainda em 2004.
Bené também marca presença com a Oca Xinguana, construída em 2016 por indígenas do Baixo Xingu. Inaugurado com a presença de Ailton Krenak e de cinco etnias indígenas diferentes, o espaço serviu durante anos como ponto de convivência e intercâmbio entre culturas.
“Hoje temos cerca de 20 obras. E aqui também há uma questão que é uma certa liberdade que é dada aos artistas para eventualmente criarem coisas efémeras, que duram uma temporada. A ideia, diferentemente de um museu, é que seja um laboratório, um espaço de experimentação. Obviamente alguns trabalhos acabaram tendo um caráter mais permanente e tal, mas isso não é condição”, explica Fabio Delduque.
Enquanto os dias são de produção, as noites encontram conexões em festas e momentos ao redor da fogueira. Ao pôr do sol e aos fins de semana até aos últimos dias de julho, o Festival abre ao público com uma programação que vai desde conversas com artistas a exibições de filmes, concertos, teatro
e oficinas. Fora do evento, a Fazenda ainda recebe visitantes em sua pousada, cercada por mata.
Ainda dá tempo de aproveitar o Festival Serrinha Arte, que segue até o dia 27 de julho, quando acontece aa
ativação anual da obra ‘Eu Te Como’, de José Roberto Aguilar. Levado pelas chamas, encerra este primeiro capítulo de um ciclo que terminará efetivamente no próximo ano com a exposição no Museu da Língua Portuguesa. E lá estaremos, com a sede de quem conhece o poder que encontraremos. Viva, Serrinha!