“Nunca se esqueça que basta uma crise política, económica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados.”
Esta frase, bastante famosa, vem de ninguém menos que Simone de Beauvoir
um dos maiores escritores e filósofos da história, que revolucionou ao publicar o livro O Segundo Sexo
lá em 1942.
E, além de ser um belo lembrete, é interessante pensar como essa frase se enquadra bem em um ano de eleições municipais.
Ops, isso parece um exagero para você? Então, vamos por partes.
Caso você esteja por fora, 2024 é o ano de
eleições municipais
no Brasil – vamos eleger prefeitos e vereadores -, e embora grandes discussões sobre direitos reprodutivos apareçam com mais frequência em anos de eleições gerais, precisamos levantar essa conversa agora também.
“[Direitos reprodutivos] são todos aqueles direitos relacionados ao exercício da reprodução – ou seja, o direito de ter filhos ou não, de decidir quando e com quem”, lembra ao CAPRICHO
Laura Molinari
coordenador de campanha
Nem preso nem morto
.
“E poder tomar essa decisão de forma consensual, livre de violência e qualquer outra forma de coação, além de ter acesso a informações e meios adequados para torná-la, de fato, uma escolha.”
Reforçar esse conceito é importante porque em 2024 vimos o Congresso brasileiro tentar reverter uma determinação constitucional que garante o direito ao aborto em casos de estupro –
lembrar
?
Sabemos que o aborto é um assunto super delicado aqui no Brasil e que sofre influência de muitos aspectos da sociedade – como a religião. Ao mesmo tempo, também é considerada um problema de saúde pública, pois interfere no bem-estar do indivíduo e da sociedade e representa um problema que pode ser prevenido por outros meios. Não se preocupe, explicaremos mais.
No Brasil, segundo
portal da Câmara dos Deputados
mais de 800 mil mulheres abortam anualmente – e isso é apenas uma estimativa, já que a prática é criminalizada aqui. É possível que o número seja ainda maior. Desse total, diz-se que quase 200 mil recorrem ao Sistema Único de Saúde por sequelas ou consequências de procedimentos mal executados ou realizados em situações perigosas, sem os equipamentos ou higiene necessários.
Como resultado, no Brasil,
O aborto é a quinta principal causa de morte materna
.
Mas a questão dos direitos reprodutivos vai além disso. Pense, por exemplo, nas mulheres que não têm acesso ao pré-natal adequado – aquela bateria de exames e acompanhamento médico necessários durante a gravidez.
Ou ainda sobre a questão da pobreza menstrual: cerca de
713 mil meninas não têm acesso a banheiros
ou chuveiros em casa, e mais de 4 milhões não têm acesso a itens mínimos de cuidados menstruais nas escolas (como absorventes higiênicos).
Agora imagine os problemas de saúde que isso pode causar. Enorme, certo?
“Na vida de muitas pessoas, estes direitos são literalmente uma questão de vida ou morte – se não tiver acesso a cuidados pré-natais adequados ou a um aborto legal porque a sua vida está em risco, por exemplo”, continua Laura.
Como meu voto para prefeito pode afetar essa questão, CAPRICHO?
Com todo esse contexto em mente, você deve estar se perguntando: “Onde a prefeitura se enquadra nessa história? Não é o Governo Federal quem deveria se preocupar com isso?” De certa forma, sim. Afinal, os municípios seguem as determinações estabelecidas pelo nosso Executivo (Presidente e Congresso Nacional).
Porém, como donos dos próprios narizes, os prefeitos têm uma responsabilidade gigantesca nesta história, pois esses políticos zelam pelo bem-estar da população de cada cidade. São as prefeituras que administram grande parte dos serviços básicos de saúde que contribuem para o planejamento reprodutivo e o acompanhamento rotineiro da saúde reprodutiva em geral, especialmente de adolescentes e jovens.
“É no ‘postinho’ ou em outros tipos de unidades da Prefeitura que você pode não só ter acesso gratuito à maioria dos métodos contraceptivos de sua escolha, mas também preservativo
e até DIU, além de contracepção de emergência (pílula do dia seguinte) e outros protocolos de saúde e cuidados após relação sexual desprotegida”, explica a coordenadora.
As prefeituras também são responsáveis pela manutenção e administração de muitos hospitais que são referência no atendimento às vítimas de violência sexual e maternidades. Ou seja, é papel da prefeitura garantir assistência obstétrica livre de violência e acesso ao aborto legal nos casos em que for permitido por lei nesses ambientes.
“Além das obrigações e responsabilidades em relação à saúde, podemos falar também das responsabilidades relacionadas à educação sexual nas escolas e outras políticas para prevenir a gravidez não planejada, especialmente na adolescência, e para enfrentar e acolher vítimas de violência sexual – como os municípios integrados centros de atendimento e casas abrigo”, diz Laura.
Ufa! Dá para entender que o prefeito tem muito o que fazer quando o assunto é direitos reprodutivos, né?! Porque precisamos lembrar que, infelizmente, o Brasil é um país em que a desigualdade social é enorme, e as mulheres negras e indígenas, por exemplo, têm ainda menos acesso a serviços básicos que garantam o seu bem-estar.
Aqui podemos até introduzir outro conceito: o de justiça reprodutiva. Ele diz o seguinte: se uma prefeitura não tem uma proposta adequada de saneamento básico (ou seja, esgoto e coleta de lixo, por exemplo), como as mulheres podem cuidar da sua saúde reprodutiva? “Se não existe um plano de mobilidade urbana adequado, como escolher a maternidade sabendo que boa parte do seu dia será dedicada à ida ao trabalho?” pergunta Laura.
Em quem vou votar então?
Bem, vamos continuar apertando este botão:
Escolher votar conscientemente é muito importante quando consideramos essas questões
. A boa notícia é que estes temas, embora considerados controversos e raros nas conversas políticas, são agora discutidos com mais frequência do que no passado. O que significa que existem alternativas.
“Olhar para quem defende propostas de cuidado e para quem defende a prevenção em vez de focar exclusivamente na punição, por exemplo, são caminhos que ajudam nessa escolha!”, sugere a coordenadora. “E quem está envolvido em movimentos sociais, claro! Várias candidaturas constroem movimentos, por exemplo, ou se aproximam de grupos que atuam em territórios ou em determinadas causas, como direitos sexuais e reprodutivos.”
E, mais uma vez, neste e em todos os casos relacionados com eleições, o nosso trabalho não termina com o acionamento da urna eletrónica. Precisamos ficar atentos para que as promessas feitas pelos candidatos a prefeito e vereadores cumpram o que foi dito em suas propostas de governo e campanhas eleitorais.
“Os movimentos sociais e as organizações da sociedade civil fazem esse trabalho diário de fiscalização e cobrança, então uma alternativa é acompanhar e contribuir de todas as formas possíveis com as ações desses grupos”, afirma Laura. “Mas há formas cada vez mais criativas de chamar a atenção dos líderes políticos para causas urgentes! Organizar ações em redes, mobilizar grupos, coletivos, para ações de rua e até participação direta em espaços legislativos.”
Voltando a um tema do início deste texto, a campanha contra o PL 1904 (também chamado de PL do Estupro) contou com uma mobilização popular que foi super importante para denunciar o absurdo da proposta e fazer o Congresso voltar atrás na votação. No dia a dia pode não parecer assim, mas a nossa voz tem muito poder quando se trata dos nossos direitos.