Quem vê hoje o sucesso de Deadpool, personagem que conquistou o coração até de quem nem se importa em ler quadrinhos, não imagina o quão crua e forçada a criatura nasceu. Coincidência ou não, seu criador, Rob Liefeld, também era meio bagunçado, com um ego desproporcional ao respeito pelas regras básicas da ilustração. Ó Canaltech
conta a história deste artista peculiar, que “envelheceu bem”.
Rob Liefeld — leia-se “Láiféld” em inglês, embora a maioria das pessoas pronuncie “Lífild” — sempre foi fã de quadrinhos desde criança, quando cresceu lendo a explosão de super-heróis na Europa. Maravilha
Comics e DC Comics nas décadas de 1970 e 1980, com obras de artistas como John Byrne, George Pérez, Marv Wolfman, Frank Miller, entre outros — especialmente Arthur Adams.
Entre a infância e a adolescência, Liefeld passou por problemas financeiros e médicos na família, pois seu pai passou anos em tratamento contra o câncer. Embora todos ao seu redor já reconhecessem sua inclinação pela arte dos quadrinhos, o menino não tinha recursos para estudar e desenvolver seus desenhos e aprender o básico. Ele começou a praticar em um curso local enquanto fazia biscates para ajudar nas tarefas de casa.
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Além dos esboços promissores, Liefeld começou a praticar os mais diferentes estilos e obras de arte enquanto permanecia no hospital com o pai, o que o levou a buscar um traço pessoal. Depois de enviar seu portfólio para diversas editoras e exibi-lo em diversas avaliações de novos talentos na San Diego Comic-Con, ele passou a fazer pequenos trabalhos para Megaton Comics, DC Comics e Marvel Comics.
No início, a influência de George Pérez era clara em seus traços, bem como nas falas, poses, composição e narrativa que seguiam as referências orientais da obra de Arthur Adams. Liefeld também ficou de olho no estilo “extremo” de Todd McFarlane, que também estava começando e chamou a atenção pelo excesso de detalhes e maior foco na ação explosiva —uma enxurrada de splash pages, páginas duplas.
Liefeld vira sucesso e concorre com vendas milionárias com o “inimigo” McFarlane
Em 1988, Liefeld finalmente conseguiu sua primeira grande chance com uma minissérie apresentando dois personagens de terceiro nível, Hawk e Dove. Seu estilo, focado em ação extrema, linhas cheias de hachuras e personagens agressivos, trouxe um frescor ao gênero de super-heróis, que já dava sinais de cansaço criativo.
O sucesso da série revelou uma mudança no gosto dos leitores, que também passaram a comprar mais histórias desenhadas por jovens artistas com abordagem semelhante: páginas excessivamente detalhadas e ação extrema, com personagens mais violentos e sexualizados. Erik Larsen, Marc Silvestri e especialmente Jim Lee e Todd McFarlane apresentaram trabalhos que confirmaram essa tendência — e o aumento massivo nas vendas dos títulos que assinaram aumentou o hype.
Nessa época, em 1989, Liefeld começou a conviver muito com McFarlane, que se tornou seu “inimigo”: um amigo que compartilhou o desenvolvimento desse estilo e, ao mesmo tempo, alcançou vendas milionárias para o títulos que ele desenhou na Marvel Comics. McFarlane começou a vender tanto que ganhou seu próprio título, que ele mesmo escreveu, desenhou e pintou. Homem-Aranha #1
vendeu mais de 2,5 milhões de cópias — uma quantidade absurda que bateu recorde nos Estados Unidos.
Liefeld começou a receber atenção, valorizando ainda mais a narrativa explosiva com exageros por toda parte, ignorando noções básicas de desenho, como anatomia e perspectiva. Isso não existia na época e atingiu os jovens que estavam começando a ler e se cansaram do estilo que existia desde a década de 1970 e estavam exaustos.
Liefeld começou a mostrar suas garras quando passou a ignorar grande parte das anotações do roteiro da roteirista Louise Simonson, apenas para poder contar a história de uma forma mais exagerada, focando na ação. Simonson foi obrigada a deixar o título de Novos Mutantes, pois, devido ao aumento nas vendas, ela estava apenas escrevendo coisas para orbitar os desenhos do ilustrador.
Depois de uma boa passagem pelos Novos Mutantes Liefeld ganhou sua própria revista Força X
, que, em sua edição de estreia, trazia jovens aprendizes mutantes se tornando soldados sob o comando de Cable, personagem criado pelo artista, além de Stryfe e do grupo extremista Mutant Liberation Front. E foi nesta revista que também nasceu Deadpool. Força X #1
lançado em agosto de 1991, vendeu nada menos que 3,9 milhões de cópias — o que aumentou a rivalidade com McFarlane.
Esses números só seriam superados pelos X-Men de Jim Lee, que alcançou a assustadora marca de 7 milhões de cópias vendidas. Só para você ter uma ideia, em todo o Brasil, as revistas mais populares, como Batman, se vendem em torno de 30 mil exemplares, já é um sucesso. Ok, existem particularidades de cada mercado, mas isso dá uma ideia de quanto Homem-Aranha #1
, Força X #1
Isso é X-Men #1
vendido.
A queda do pai de Deadpool
Cansados de criar propriedades para a Marvel Comics e não receber royalties sobre elas, Liefeld e McFarlane lideraram uma rebelião de artistas, que deixaram a Casa das Ideias para montar a Image Comics. Isso aconteceu de uma forma não tão agradável, com a dupla se manifestando contra todos, se gabando de seus números e até insultando artistas de gerações passadas.
Naquela época, o ego já havia tomado conta de Liefeld, que na verdade havia se tornado uma celebridade, mas acabou se deixando levar e acreditando que o criador era mais importante que as criaturas. Assim, suas revistas na Image Comics, como Youngblood, embora tenham estreado bem, caíram vertiginosamente em pouco tempo.
O que Liefeld não esperava era que seu estilo explosivo também aparecesse em centenas de outros títulos de diferentes editoras, o que causou um rápido desgaste. Assim, o que não era muito evidente começou a se destacar ainda mais, como os maneirismos excessivos do designer, as falhas absurdas no desenho das mãos e dos pés quase inexistentes, e uma perspectiva simplesmente impossível para a realidade de um ser humano comum.
A gota d’água para os fãs foi seu retorno à Marvel no final dos anos 1990 para desenhar sua versão dos Vingadores. Ele conseguiu fazer sucesso com cada um dos personagens, e sua ilustração com um baú impossível no Capitão América se tornou memes
em uma época em que os memes nem existiam.
Sua ascensão foi tão meteórica quanto sua queda. Em dez anos, Liefeld deixou de ser um artista pobre e promissor para se tornar uma celebridade arrogante e milionária. Depois disso, ficou mais de dez anos sem fazer nada de relevante — e até cometeu uma história em quadrinhos em que JESUS CRISTO LUTA COM ZEUS — sério, e sem o desenho dos pés, claro.
Retorno e “resgate” do pai de Deadpool
Eis que na época em que Deadpool começou a fazer sucesso, em 2016, quando o primeiro filme de Ryan Reynolds chegou aos cinemas, Liefeld, agora mais maduro, voltava a fazer trabalhos mais sóbrios e menos preguiçosos. Ele também se tornou bastante vocal nas redes sociais, conversando muito com os fãs e até zombando de si mesmo e de sua incapacidade de desenhar os pés dos personagens.
A Marvel o contratou novamente para fazer algumas capas e minisséries específicas, aproveitando uma onda de nostalgia que vivemos por volta dos anos 1990 na cultura pop. Liefeld ainda não sabe desenhar anatomia e perspectiva corretamente, mas mostra que sabe desenhar, principalmente com mais tempo para terminar o trabalho.
Embora a anatomia e a perspectiva continuem a ser violadas em sua obra, os desenhos dos personagens são mais bem trabalhados, assim como as poses e o acabamento com cores e obras de arte. Caso contrário, ele é o mesmo Rob Liefeld, só que agora mais maduro e calmo.
Hoje, aos 53 anos, Liefeld também tem sido muito verbal em relação aos direitos dos artistas, comenta processos de produção de desenhos, ri com seus seguidores sobre seus erros de anatomia, enfim, pode-se dizer que o criador de Deadpool realmente “Idoso” bom. Dizem que precisamos ser idiotas em algum momento de nossas vidas para aprender como melhorar — foi o que aconteceu com o pai de Deadpool.
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