O ataque às universidades públicas gratuitas voltou ao debate político. Na terça-feira, 17, o deputado estadual Leonardo Siqueira (Novo) protocolou na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) um projeto de lei que autoriza a cobrança de mensalidades pelas instituições de ensino superior do estadouma espécie de Fies para a educação pública.
O texto prevê a instituição, pelo Estado, de um programa de financiamento estudantil, o Siga, que deverá conceder empréstimos aos estudantes para que estes possam pagar os custos das suas propinas. O custo de cada curso, segundo a proposta, seria arcado pelas universidades.
Estão previstos dois tipos de empréstimo: um deles, o Os empréstimos com Reembolsos Contingentes de Renda (ECR) prevêem que os pagamentos sejam parcelados ao longo da vida do indivíduo, com parcelas ajustadas de acordo com sua renda futura, o que torna o pagamento progressivo. Um segundo modelo prevê o financiamento de acordo com o rendimento atual do trabalho dos estudantes.
O texto prevê ainda que será acrescida uma sobretaxa de 25% ao valor inicial do empréstimo. Estabelece que, ao longo do curso, o valor seja corrigido pelo IPCA acumulado no período. Após o curso, caso o rendimento do trabalho ultrapassasse a faixa de isenção, o empréstimo seria reajustado pela Taxa de Longo Prazo (TLP) acumulada no período; se for inferior à alíquota de isenção, deverá ser aplicada a correção pelo IPCA do período.
O parlamentar defende que as universidades seriam ‘ineficientes’ e que os recursos das mensalidades lhes permitiriam ser mais sustentáveis. Este lema, porém, não é novo na política. Foi usado por governo do ex-presidente Michel Temer (MDB) ao encomendar, em 2017, um relatório ao Banco Mundial, que fazia a recomendação. O governo Jair Bolsonaro (PL) também tentou aprovar uma Proposta de Emenda Constitucional para instituir mensalidades, sob aplausos do então ministro da Educação, Abraham Weintraub, ele próprio um detrator das universidades públicas.
Para o doutor em Educação, Nelson Cardoso do Amaraltambém presidente da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), à direita insiste em uma agenda inconstitucional. “Isso vai diretamente contra o disposto na Constituição Federal”, destacou ao relatório, citando o artigo 206, que estabelece o livre do ensino público em estabelecimentos oficiais financiados com recursos públicos, em qualquer nível de ensino, e veta cobrança pelo estudo.
A Constituição será a arma da oposição para tentar bloquear o PL. A deputada estadual Ediane Maria (PSOL) já protocolou emenda que destaca a inconstitucionalidade do projeto.
“A cobrança de mensalidades poderia excluir estudantes de baixa renda e restringir o acesso daqueles que não têm condições de pagar, contrariando o princípio da igualdade de oportunidades. A cobrança de propinas poderia aprofundar as desigualdades sociais, limitando o acesso ao ensino superior apenas àqueles que o podem pagar. Isso poderia criar um sistema onde apenas os mais privilegiados tenham acesso ao ensino superior, perpetuando ciclos de desigualdade”, escreveu o parlamentar, que classificou o PL como indecente.
O deputado estadual Carlos Gianazzi (PSOL), membro da Comissão de Educação da Alesp, não vê chances de a proposta ir adiante. “Há acordo, projetos só entram em pauta de votação se houver acordo entre todos os partidos —e nós, do PSOL, jamais permitiremos isso”, declarou. Para o parlamentar, trata-se de um movimento político do Novo para se posicionar a favor de um projeto neoliberal que tenta avançar na privatização da educação.
Os falsos mitos que justificam a cobrança de mensalidades
Em conversa com o repórter CartaCapitalo professor Nelson Cardoso listou algumas justificativas estabelecidas pelo PL e que constituem ‘falsos mitos’ para tentar incentivar as universidades a cobrar mensalidades.
1. Os países desenvolvidos utilizam o sistema de cobrança
O PL menciona que 20 países desenvolvidos, incluindo Austrália, Inglaterra, Chile, Coreia do Sul, Estados Unidos, Holanda, Japão e Nova Zelândia – já utilizam cobrança de mensalidade e que, portanto, isso seria viável para o Brasil.
“O projeto ignora uma questão central: que esses países já resolveram muitos dos seus problemas e têm uma renda per capita muito elevada, o que viabiliza um gasto para as pessoas. No Brasil não é, basta olhar o nível da nossa desigualdade econômica. Quando você olha o perfil dos estudantes das universidades federais, por exemplo, mais de 70% têm renda per capita entre um salário e um salário mínimo e meio”, considera.
Outro ponto, segundo o pesquisador, é que o PL propositalmente não leva em conta o nível de investimentos realizados pelo Brasil, em comparação com outros países. Um relatório publicado no início do mês pela Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) apontou que o investimento brasileiro anual, por estudante, é um terço daquele investido pelos países que compõem a OCDE. O que torna a comparação ‘infundada’, diz Cardoso.
2. As universidades têm baixa participação entre a população mais pobre
O projeto aponta que as universidades públicas têm dificuldade de incluir a população mais pobre e que são formadas em sua maioria por estudantes de famílias ricas.
O pesquisador rebate, destacando que o PL não considera a mudança no perfil dos estudantes das universidades públicas ao longo da última década, principalmente com o advento da Lei de Cotas em 2012.
Levantamento realizado pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) mostra que, em 2010, o percentual de estudantes das universidades federais provenientes de escolas públicas e privadas já era igual a 50%. A partir daí, o percentual de universitários oriundos de escolas públicas cresceu, chegando a 64,7% em 2018.
Cardoso destaca ainda o impacto da lei afirmativa na renda per capita dos estudantes. Outra pesquisa realizada pela Andifes mostra que, em 2010, pouco mais de 40% dos estudantes das universidades federais tinham renda mensal superior a um salário, ou um salário mínimo e meio; em 2014, o percentual ultrapassou 60% e em 2018 chegou a 70%.
“É falso, portanto, dizer que os estudantes das UFs vêm, em sua maioria, de famílias ricas. O perfil de renda total dos alunos explicado se aproxima do perfil de renda total da população brasileira”, avaliou.
3. Financiamento traria benefícios aos estudantes
O pesquisador questiona ainda a afirmação de que o financiamento trará benefícios aos estudantes, dado o aumento dos impostos sobre os estudantes e a possibilidade de inadimplência. Cardoso não deixa de considerar o nível de inadimplência gerado pelo Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior do Governo Federal, o Fies, que chega a 50% este ano.
4. A matrícula em instituições privadas já prevalece no Ensino Superior
O Ensino Superior brasileiro tem a maioria das matrículas realizadas em instituições privadas, que concentra 78% dos alunos. Para o presidente da Fineduc, isso demonstra o desafio brasileiro de ampliar a oferta no ensino superior públicoo que envolve garantir mais recursos para a expansão da rede, e para que as universidades possam não apenas cobrir seus custos, mas também melhorar suas estruturas, como laboratórios e equipamentos.
O Plano Nacional de Educação destina três de suas 20 metas ao Ensino Superior, uma delas propõe ampliar a taxa de matrícula na etapa para 50% da população, e promover a taxa de matrícula da população de 18 anos para 33%. aos 24 anos.