Depois que o frade dominicano Tito de Alencar Lima (1945-1974) foi encontrado morto por enforcamento nos arredores de Lyon, França, em 10 de agosto de 1974, seus amigos encontraram uma nota sintomática em seu exemplar surrado da Bíblia. “É preferível morrer a perder a vida”, escreveu ele.
Embora a causa da sua morte nunca tenha sido completamente esclarecida, tudo indica que Frei Tito, como ficou conhecido, suicidou-se por não suportar as consequências físicas e psicológicas das longas e constantes sessões de tortura a que foi sujeito, entre Novembro de 1969 e janeiro de 1971, período em que foi preso pelas forças do regime ditatorial que governava o Brasil.
“É muito importante comemorar – que significa ‘recordar’ – os 50 anos do martírio de Frei Tito. É uma forma de não admitir o apagamento da história das atrocidades cometidas pela ditadura militar ao longo de 21 anos, de 1964 a 1985, e de alertar as novas gerações para o risco de o Brasil voltar a perder a sua frágil democracia e, mais uma vez, cair nas mãos dos neofascistas”, comenta o frade e escritor dominicano Carlos Alberto Libânio Christo, conhecido como Frei Betto, que era amigo de Tito e estava preso com ele.
Neste sábado (08/10), ele lidera um evento em homenagem a Tito na Escola Nacional Paulo Freire, no Ipiranga, em São Paulo.
Juventude católica e movimento estudantil
Nascido em Fortaleza, Tito começou a participar das reuniões da Juventude Estudantil Católica (JEC) ainda adolescente. A organização era um braço social da Igreja, com uma preocupação política comprometida. A partir do ensino médio, passou a fazer parte do movimento estudantil — postura que se consolidou quando, ainda estudante de filosofia na Universidade de São Paulo (USP) e já radicado na capital paulista, filiou-se ao Sindicato Nacional dos Estudantes (UNE).
Por esta altura, já tinha ingressado na ordem religiosa dos frades dominicanos. “Conheci o Tito quando ainda éramos estudantes do ensino médio, no início dos anos 1960. Entre 1962 e 1964 eu fui líder nacional do JEC e ele foi líder do Nordeste. Reunimo-nos diversas vezes em reuniões regionais e nacionais do JEC. E como ambos tínhamos a intenção de abraçar a vida religiosa, ingressando na ordem dominicana, nos tornamos confidentes”, lembra Betto. “Entrei no convento em 1965, e ele em 1966. A partir de 1967 moramos no convento do bairro Perdizes, em São Paulo. Estudamos filosofia.”
No dia 12 de outubro de 1968, Frei Tito foi um dos participantes do famoso Congresso da UNE em Ibiúna. Como outros 600 estudantes, ele acabaria preso pela primeira vez, autuado e depois liberado.
A segunda detenção, mais longa e cruel, ocorreria no ano seguinte. “Não tivemos medo”, diz Frei Betto. “Éramos viciados em utopia, acreditávamos na queda da ditadura e no restabelecimento da democracia. O medo surgiu quando fomos presos em novembro de 1969, acusados de ser ‘terroristas’”.
“Pessoas como Tito foram presas pelo regime porque o regime prendeu aqueles que eram considerados subversivos, que se opunham, com armas ou não”, diz a jornalista Leneide Duarte-Plon, autora, em parceria com Clarisse Meireles, da biografia Um homem torturado – Nos passos de Frei Tito de Alencar.
Para o historiador Paulo Henrique Martinez, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), um dos motivos de sua prisão é que ele era um personagem “com dupla identidade”, pois representava tanto o ativismo estudantil quanto um grupo de religiosos que constituíam uma “rede integrada de apoio a uma das organizações que adoptaram a luta armada como forma de oposição, a ALN”. Esta Ação de Libertação Nacional “foi a mais dinâmica, a mais agressiva, a mais organizada e a mais bem preparada em termos técnicos e militares”, destaca.
Dos oito frades presos, quatro foram logo libertados por falta de provas. E quatro permaneceram presos: além de Tito e Betto, os dominicanos Fernando de Brito (1936-2019) e Ivo Lesbaupin (*1946).
Segundo Frei Betto, eles participaram do movimento estudantil e adotaram “uma postura de esquerda”, engajados na luta contra a ditadura. “Entramos no grupo Ação Libertadora Nacional, liderado por Carlos Marighella [político e guerrilheiro marxista]. Nunca pegamos em armas”, enfatiza o dominicano. “Nosso papel era dar apoio aos guerrilheiros urbanos: escondê-los, retirá-los clandestinamente do país, acolhê-los quando feridos em ações armadas, etc.”
Sobre o amigo, Betto comenta que “ele tinha alma de poeta”: “Escrevia poemas, tocava violão e dedicava longas horas à oração”.
Tortura violenta
O período de prisão de Tito pode ser dividido em duas partes. A princípio, ele ficou numa cela do Presídio Tiradentes, assim como seus demais colegas religiosos. Até então, pairava sobre ele a acusação de ser aliado da ALN de Marighella. “Ele foi violentamente torturado por [delegado] Sérgio Fleury”, enfatiza Duarte-Plon.
A situação complicou-se quando se descobriu que ele havia sido um dos mais importantes intermediários para que os universitários conseguissem o terreno de Ibiúna, onde foi realizado o congresso da UNE. No início da década de 1970, Tito virou caso da Operação Bandeirantes, definida pelos próprios torturadores como um “ramo do inferno” para opositores ao regime.
“Além de ter sido fortemente torturado quando foi preso em novembro de 1969, voltou a torturar em fevereiro de 1970, quando a repressão descobriu que ele havia obtido o site do congresso da UNE”, diz Frei Betto.
Em fevereiro de 1970, ele escreveu e conseguiu que uma carta vazasse na qual detalhava os métodos de tortura que vinha sofrendo, incluindo instrumentos de abuso, choques elétricos, espancamentos e chutes. No texto, ele revela seu desejo de se matar, entendendo que o suicídio seria a única solução para seu sofrimento e para dar visibilidade internacional às atrocidades cometidas pela ditadura.
“O governo [de Emílio Garratazu] Médici sofreu pressão no exterior para justificar a prisão de frades acusados de terrorismo”, lembra Betto. “Isso nunca tinha acontecido. Depois, durante três dias, torturaram Tito de todas as maneiras, para que ele assinasse um documento confessando que havíamos participado de operações armadas: choques elétricos, pele queimada por cigarro aceso, pancadas na cabeça, etc. Ele resistiu. Ele não assinou.”
O seu martírio parecia ter chegado ao fim quando, em Janeiro de 1971, foi libertado por constar da lista de presos políticos trocados pela libertação do embaixador suíço raptado pelos guerrilheiros. Do Brasil, foi para o Chile, depois passou alguns dias na Itália. E então, com o apoio dos dominicanos, estabeleceu-se na França.
Duarte-Plon conta que ali se estabeleceu primeiro num convento dominicano em Paris e depois matriculou-se na Universidade Sorbonne. “Mas ele não tinha mais condições de continuar os estudos”, comenta. Depois foi enviado para o convento Sainte-Marie de La Tourette em Éveux, perto de Lyon.
Ficou lá um ano, até cometer suicídio”, relata o biógrafo. “Ele vivia desesperado, com alucinações, sonhos e visões. A morte era a única saída.” Antes, ele já havia tentado o suicídio duas vezes: na prisão, cortou os pulsos; na França, ele foi envenenado com medicamentos. Nas duas ocasiões ele acabou internado e salvo.
Um frade marxista
Seu caso tornou-se simbólico. Mas depois da prisão, Tito nunca ficaria bem. “As consequências do que ele passou foram muito profundas, abalando a sua própria personalidade. Tito começou a fazer uma introspecção e a sentir um certo pânico incontrolável. Sentiu-se permanentemente ameaçado com novas prisões e novas torturas”, acrescenta o historiador Martinez. “E isso causou uma destruição psicológica do indivíduo.”
Duarte-Plon destaca que Tito “se declarou um frade que leu Marx e encontrou no marxismo muitas linhas que estariam na mensagem de Cristo”: “Ele sempre se declarou marxista. Ele trabalhou para libertar o povo brasileiro da ditadura e encontrar a democracia. Ele foi selvagemente destruído nas salas de tortura. Eles não tinham limites, torturavam até o ponto ficar insuportável.”
Dez anos após sua morte, o então cardeal arcebispo de São Paulo, Paulo Evaristo Arns (1921-2016), em celebração litúrgica na Catedral da Sé, afirmou que “Frei Tito não se matou, mas buscou a unidade perdida do outro lado da vida deste lado.”