Rumores sobre a suspensão das atividades de pelo menos três igrejas católicas na zona norte do Rio de Janeiro, sob supostas ordens de tráfico de drogas, têm causado surpresa e repercussão nas redes sociais.
Igrejas dos bairros Brás de Pina e Parada de Lucas teriam sido impedidas de celebrar missas, casamentos ou batizados, pelo traficante de drogas Álvaro Malaquias Santa Rosa, conhecido como Alvinho ou Peixão, que se diz evangélico e integra o Terceiro Comando Puro facção, ou TCP.
Sem falar diretamente em nenhuma ordem, as freguesias de Santa Edwiges e Santa Cecília, em Brás de Pina, e Nossa Senhora da Conceição e Justino, em Parada de Lucas, cancelaram atividades como missas e festas juninas. As igrejas publicaram comunicados no sábado, 6, anunciando a suspensão das atividades paroquiais “até novo aviso”; posteriormente, as publicações foram excluídas.
Temerosos, moradores da região e membros da irmandade das igrejas católicas relatado para o jornal O Globo clima de apreensão. Há também relatos da presença de motociclistas armados com fuzis, que teriam dado ordem aos padres para cancelarem as atividades.
A Secretaria de Segurança Pública do Rio, porém, negou que tenha havido intimidação ou ordens de traficantes para fechar as igrejas, atribuindo a informação a “rumores nas redes sociais”. Afirmou ainda que ambas as freguesias estão abertas, mas com segurança reforçada pela Polícia Militar. A Polícia Civil informou que entrou em contato com a Delegacia de Combate a Crimes Raciais e Delitos de Intolerância para apurar a informação.
Peixão já tinha um histórico de intolerância às religiões de origem africana, proibindo o uso do branco nas comunidades que controlava e ordenando a destruição de terreiros. Contudo, seu avanço sobre as denominações católicas chama a atenção, dadas as profundas raízes políticas e sociais da Igreja Católica.
“A Igreja Católica não está só no território, sua representação simbólica vai muito além da Arquidiocese do Rio de Janeiro, isso é uma afronta à sua institucionalidade. Por isso acho que esse episódio tem uma escala maior de problemas”, avalia Robson Sávio Reis Souza, pesquisador do centro de estudos sociopolíticos da PUC Minas e do Observatório de Comunicação Religiosa.
Quem é Peixão?
Considerado o chefe do tráfico de drogas do “Complexo Israel” – nome que deu a um conjunto de favelas da zona norte do Rio de Janeiro e que inclui Parada de Lucas, Vigário Geral e Cidade –, Álvaro Malaquias Santa Rosa é alvo de mandados de prisão para crimes como tráfico de drogas, homicídio e ocultação de cadáver. Ele está atualmente foragido da justiça.
Durante operação da Polícia Civil em Parada de Lucas, em 2021, agentes encontraram um painel com pintura de Jerusalém na casa do traficante. A imagem incluía a cúpula da Rocha, soldados com a bandeira de Davi e a frase “Feliz a nação cujo Deus é o Senhor”. Para marcar os territórios onde mantém domínio, Peixão utiliza frequentemente símbolos como a bandeira de Israel e a Estrela de David.
Painel encontrado em casa que seria usada por Peixão, em 2021 — Foto: Reprodução/Arquivo
O que explica a aliança entre crime e religião
Para Robson Sávio Reis Souza, pesquisador do centro de estudos sociopolíticos da PUC Minas e do Observatório de Comunicação Religiosa, o episódio reflete um fenômeno mais amplo: a associação entre grupos criminosos e determinadas denominações religiosas para competir pelo poder político. “Isso corrói os alicerces do Estado secular, fundamental para a democracia.” Confira a entrevista.
Letra maiúscula: Por que um líder criminoso restringiria as atividades nas igrejas?
Robson Souza: Isto tem a ver com o avanço de grupos criminosos, como as milícias, dentro dos territórios, e o seu diálogo com certas denominações religiosas para competir pelo poder. Veja, primeiro, temos que falar do avanço das milícias nas periferias das grandes cidades, como já vem acontecendo há algum tempo no Rio de Janeiro. Num primeiro momento, este domínio persegue questões puramente económicas: o controlo do território faz-se através da prestação de serviços, como gás, transportes públicos, internet. Porém, com o passar do tempo, esse domínio avança em busca de representação política, no território, e isso se expande para a política institucional.
Paralelo a isso, no Brasil, nos últimos 30 anos, houve um grande aumento do fenômeno do neopentecostalismo, e do crescimento de igrejas no segmento evangélico. Nos últimos anos, também se observou uma ligação entre algumas destas igrejas e grupos políticos, alguns até relacionados com a economia criminosa, e cujo objetivo é a disputa de territórios.
CC: Como a religião opera nesta luta pelo poder?
LOL: Algumas igrejas, principalmente neopentecostais, trabalham a partir da lógica da teologia do domínio, que é a ideia de que as igrejas ou certas denominações religiosas devem ganhar poder político para ‘recristianizar’ uma sociedade que estaria perdida e moralmente frágil. Partindo dessa lógica, os territórios devem ser disputados, inclusive bélicos, para que seus representantes permaneçam nessas regiões.
Muitas vezes, os criminosos que recorrem à violência para conquistar territórios associam esta captura a uma narrativa de que esta também é feita em nome do sagrado – portanto, todos aqueles que eventualmente são considerados inimigos devem ser confrontados, excluídos ou eliminados.
CC: Há casos notórios de ameaças do tráfico de drogas e de milícias às religiões de base africana. Por que agora as igrejas católicas?
LOL: É importante destacar que o Rio de Janeiro também é um dos que tem o menor número de católicos declarados, em torno de 30 ou 35%. Há um declínio real e simbólico da Igreja Católica e, talvez por isso estes grupos estejam sendo tão ousados. A questão é que a Igreja Católica não está apenas no território, sua representação simbólica vai muito além da Arquidiocese do Rio de Janeiro, isso é uma afronta à sua institucionalidade. É por isso que acho que este episódio tem uma escala maior de problemas. O que está acontecendo no Brasil contemporâneo é que, cada vez mais, o discurso e as estruturas religiosas são usados para conquistar o poder. Os grupos extremistas têm-se apropriado cada vez mais do discurso religioso para ganhar poder. Essa é a questão.
CC: Como podemos regressar à democracia sem interferência religiosa?
RS: É um empreendimento hercúleo. Primeiro porque, no Brasil, temos imensa dificuldade em regular qualquer charlatanismo ou abuso de poder por parte de uma instituição religiosa. Pensando em regulação, dificilmente ela prosperará, portanto. A segunda questão tem a ver com a cultura religiosa. Qualquer possibilidade de interferência nos chamados assuntos religiosos é massivamente rejeitada pela opinião pública.
Mas existe uma possibilidade, se os sectores democráticos, como os meios de comunicação social e a opinião pública, voltarem a discutir a importância do Estado laico. As próprias igrejas devem chegar a um consenso de que o estado teocrático é um risco para cada uma delas, pois alguma religião passaria a dominar o Estado e, portanto, as outras igrejas. É urgente que criemos este consenso em torno da democracia e do Estado laico.