Quase na divisa do Mato Grosso com o Amazonas, uma fazenda pegou fogo. Muito. Muito mais do que aqueles ao seu redor. Na verdade, mais do que qualquer outra propriedade rural privada em todo o Brasil.
Segundo levantamento inédito do Órgão Público, a fazenda Bauru, no município de Colniza (MT), foi a que teve mais focos de incêndio registrados ao longo de 2024. Foram 608 detectados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) desde o começo do ano. A segunda fazenda com mais incêndios no mesmo período registrou 290 – menos da metade de Bauru.
Incêndios (em vermelho) na área da fazenda Bauru ao longo deste ano. Créditos: Bruno Fonseca/Agência Pública
A maioria dos incêndios agrícolas aconteceu em julho. Houve dias em que a fazenda teve mais de 50 surtos ativos. Mas o problema não desapareceu. Agora, em setembro, parte da fazenda aparece com alerta de incêndio grave no sistema de mapas do Google.
Os incêndios na fazenda Bauru colocaram o imóvel no radar do Batalhão de Emergência Ambiental do Corpo de Bombeiros. Em agosto deste ano, foi divulgada uma lista de áreas com focos de incêndio que estavam sendo monitorados: Bauru estava entre elas. A reportagem questionou a corporação sobre suas ações neste ano e se alguém foi preso por incêndio criminoso, mas os bombeiros não responderam até a publicação.
Alerta de incêndio na área da fazenda em 10 de setembro de 2024. Créditos: Bruno Fonseca/Agência Pública
A fazenda Bauru tem histórico de incêndio criminoso. Em 2022, uma operação policial descobriu um plano para realizar um novo “Dia do Fogo” no local. Segundo a investigação, que envolveu diversos órgãos do Executivo e do Judiciário do estado e dos municípios, um grupo criminoso se organizava para provocar incêndios coordenados em vários pontos de Colniza. A Operação Jomeri prendeu uma pessoa por porte de arma ilegal e apreendeu material caseiro para atear fogo.
O “Dia do Fogo” original foi uma ação de agricultores da região de Novo Progresso (PA), em 2019, que concordaram via WhatsApp em realizar queimadas em protesto contra as políticas ambientais de preservação da floresta. Na época, os incêndios atingiram também o estado de Mato Grosso, na região da BR-163. Os responsáveis permanecem impunes até hoje.
O relatório de Público também constatou uma série de áreas embargadas por desmatamento irregular na região de Bauru em 2022, com base em decisões da Secretaria de Meio Ambiente do estado.
Anteriormente, em 2019, a empresa responsável pela fazenda Bauru foi multada em R$ 4 milhões pelo Ibama por destruir mais de 540 hectares de vegetação por meio do fogo, sem autorização do órgão competente. No ano anterior, a propriedade já havia sido multada em mais de R$ 13 milhões pela destruição irregular de 2,6 mil hectares de floresta.
Município onde está localizada a fazenda detém o recorde de queimadas no estado
As queimadas na fazenda Bauru ajudam a explicar como Colniza se tornou o município com maior número de focos de calor em Mato Grosso em 2024, com 2.171 registros. A baixa qualidade do ar aumentou a procura por atendimento médico nas unidades de saúde em setembro, principalmente crianças e idosos, segundo o G1.
O histórico de Colniza não é bom há muitos anos. Em 2015, o município liderou o ranking dos que mais desmatam na Amazônia. A cidade sozinha foi responsável por 19% do desmatamento registrado no estado entre agosto e dezembro daquele ano.
Satélites capturaram área devastada por incêndios na fazenda Bauru. Créditos: Bruno Fonseca/Agência Pública
Colniza é o sexto maior emissor de gases de efeito estufa do país: foram emitidas 19,2 milhões de toneladas de CO2 equivalente em 2022, segundo o Sistema de Estimativa de Emissões de Gases (Seeg), do Observatório do Clima. E também é o campeão brasileiro em emissões per capita: é como se cada um dos 25.766 habitantes da cidade tivesse mais de 300 carros percorrendo 20 quilômetros por dia.
Mato Grosso é o estado que mais registrou focos de calor ao longo do ano no país (38.279 até 11 de setembro, já superando em 76% o número de focos do ano passado). A situação é tão drástica que 22 municípios do estado cancelaram os eventos do dia 7 de setembro por causa da fumaça.
Políticos condenados por corrupção compraram “fazenda de bombeiros”
Mas quem é o dono da fazenda Bauru? A resposta é uma luta legal. De um lado, uma dupla formada por um ex-governador condenado a seis anos de prisão por corrupção e lavagem de dinheiro e um ex-deputado condenado a 26 anos de prisão por desvio de recursos públicos. Do outro, um grupo empresarial que diz ter sido inadimplente por políticos no processo de venda da fazenda, que é palco de conflitos armados e mortes há quase 20 anos.
Os políticos são Silval da Cunha Barbosa (MDB), ex-governador de Mato Grosso entre 2010 e 2015, e José Geraldo Riva (PSD), ex-deputado estadual por quatro mandatos, entre 1994 e 2014, ex-presidente da Assembleia Legislativa e um dos os políticos mais influentes do estado. Riva está em regime semiaberto desde 2022.
De acordo com um processo criminal que tramita no Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT), Barbosa e Riva teriam tentado comprar a fazenda Bauru em 2012 por R$ 18,6 milhões. A compra, porém, foi alvo de investigação policial, pois a Polícia Civil estadual havia identificado que o dinheiro utilizado por Barbosa para pagar as primeiras parcelas da fazenda tinha origem criminosa.
O ex-governador de Mato Grosso Silval Barbosa, condenado por corrupção, teria tentado comprar a fazenda Bauru. A negociação foi alvo de investigação policial e acabou na Justiça. Créditos: Marcos Vergueiro/Secom MT
Segundo a investigação, o ex-governador teria feito a compra com dinheiro de supostas propinas que teriam sido repassadas por frigoríficos do Grupo JBS, Marfrig e outras empresas em troca de benefícios de isenção fiscal durante a gestão Barbosa. As vantagens teriam ocorrido dentro do Programa de Desenvolvimento Industrial e Comercial de Mato Grosso (Prodeic).
Além dos dois políticos, o acordo de compra da fazenda envolveu Janete Gomes Riva (PSD), que foi promovida a candidata ao governo do estado em 2014, quando Riva, com quem é casada, teve a candidatura rejeitada pelo Tribunal Superior Eleitoral ( TSE) em razão da Lei da Ficha Limpa. Ela perdeu. Janete também é proprietária da fazenda Paineiras, em Juara (também em MT), onde sete pessoas foram encontradas em condições análogas à escravidão em 2010, segundo reportagem da Repórter Brasil.
Também participaram do acordo de compra da fazenda Bauru: Eduardo Pacheco, casado com parente de Barbosa e que representou o ex-governador no contrato; e Pedro Jamil Nadaf, ex-secretário da Casa Civil do governo Barbosa, preso ao lado do ex-governador em 2016, acusado de corrupção e lavagem de dinheiro envolvendo incentivos fiscais a empresários e negociações de terras.
A reportagem procurou o ex-governador e o ex-deputado para esclarecer a titularidade da fazenda e as queimadas no local. Nenhum deles respondeu até a publicação.
A terra é palco de conflitos e mortes há décadas
Na outra ponta da disputa está Magali Pereira Leite, sócia-diretora da Agropecuária Bauru, proprietária original da fazenda. Um dos nomes pelos quais a Fazenda Bauru é conhecida é Fazenda Magali. Ela é viúva do empresário paulista Fozi José Jorge, falecido em 2011.
Na Justiça, Leite argumenta que acertou a venda para a empresa Floresta Viva Exploração de Madeira e Terraplanagem, que tem como sócios o casal Riva, e para Eduardo Pacheco, representante do ex-governador Barbosa. Ela diz que recebeu R$ 10,5 milhões dos R$ 18,6 milhões negociados.
A reportagem entrou em contato com a Agropecuária Bauru, de Leite, que confirmou ser proprietária da fazenda Bauru, mas afirmou que “a empresa Floresta Viva está em posse desde 2012, mediante contrato de compra e venda”. Ao ser questionada sobre as queimadas, a empresa respondeu que: “Como não exercemos a propriedade da propriedade, não podemos confirmar as queimadas ou o desmatamento. Em relação aos incêndios em Mato Grosso, é de conhecimento público que a situação é gravíssima.”
A Fazenda Bauru é marcada por conflitos há anos. Em 2008, o governo do estado anunciou que seriam doados 5 mil hectares de terras para cem famílias de posseiros que ocupavam o local há mais de cinco anos. No final do mesmo ano, dois empregados da fazenda e um agrimensor que fazia medições de áreas da propriedade foram assassinados. Em 2009, outros dois funcionários foram mortos e um terceiro foi baleado.
Em 2019, a fazenda voltou a ser notícia quando ocorreram as primeiras mortes por conflitos no campo durante o governo de Jair Bolsonaro (PL). O posseiro Eliseu Queres de Jesus, de 38 anos, foi morto. Outras nove pessoas ficaram feridas. Na época, a administração da fazenda ficaria a cargo da empresa do casal Riva, que publicou nota em diversos portais lamentando o ocorrido, mas alegando que o imóvel foi vítima de invasores.
A Pública conversou com Derisvaldo de Sá, presidente da Associação Gleba União, que atende posseiros que moram no entorno da fazenda Bauru. Segundo ele, que é candidato petista a vereador nestas eleições, a situação agora está mais pacificada, pois os posseiros conseguiram fechar contratos de doação e compra e venda de terrenos.
Planos de candidatos em Colniza ignoram incêndios
O atual prefeito de Colniza, Milton de Souza Amorim, busca a reeleição pelo União Brasil. Seu único adversário é o candidato do PL Siwal Sant Ana Soares, mais conhecido como Walzinho.
Apesar de Colniza bater recordes de queimadas no estado, a Pública apurou que não há menção ao combate a incêndios ou ao desmatamento no plano de governo dos candidatos a prefeito apresentados ao TSE. As propostas visam mais flexibilizar as regras ambientais.
Sob gestão de Milton de Souza Amorim, região bate recordes de incêndio; Prefeito está concorrendo à reeleição. Créditos: Reprodução Facebook
Em vez de lidar com os incêndios, o atual prefeito afirma que pretende “interceder junto ao Estado para coibir o excesso de força nas ações da Sema [Secretaria de Meio Ambiente do Mato Grosso] e Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis]”.
Soares diz que pretende “criar um programa de disponibilização de maquinários para atender os produtores rurais e aumentar a produção agrícola do município”.
A reportagem procurou os dois candidatos, que não responderam.