No dia 8 de março de 2018, Dia Internacional da Mulher, a vereadora Marielle Franco fez um discurso corajoso na Câmara Municipal do Rio de Janeiro sobre a baixa representatividade feminina na política e as muitas dificuldades enfrentadas pelas mulheres em todos os aspectos de suas vidas.
A certa altura, um homem que assistia da galeria começou a falar em defesa da ditadura. Foi então que Marielle fez um discurso que se tornaria emblemático: “Não serei interrompido, não tolerarei interrupções dos vereadores desta Casa, não tolerarei um cidadão que chega aqui e não sabe ouvir o posicionamento de uma mulher eleita Presidente da Comissão das Mulheres desta Câmara”.
Naquele dia, não conseguiram impedir Marielle de falar. Mas, alguns dias depois, nove tiros de fuzil acabaram com sua vida.
Desde então, muitas outras mulheres em cargos políticos continuam a enfrentar interrupções e diversas formas de violência, que vão desde insultos que atacam a sua honra e abuso sexual até às microagressões diárias que muitas ainda tentam normalizar. Infelizmente, não é difícil encontrar exemplos para cada uma destas situações.
Em 2015, em protesto contra o aumento do preço da gasolina, carros começaram a circular pelo país com adesivos na entrada do tanque de combustível com a imagem da então presidente Dilma Rousseff com as pernas abertas, aludindo ao estupro pela mangueira de combustível. Sabemos que a violência sexual é uma das formas mais cruéis de subjugação e tortura. Nunca, antes ou depois, nenhum presidente homem foi alvo desse tipo de protesto, nem mesmo Bolsonaro, durante cujo mandato um litro de gasolina chegou a custar até 10 reais em alguns estados.
Cinco anos depois, em 2020, a deputada estadual Isa Penna (PSOL) teve o seio apalpado pelo colega deputado Fernando Cury (Cidadania) durante sessão na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp). O ato explícito de assédio sexual foi filmado e divulgado por veículos de imprensa de todo o país. Mesmo que Cury tenha tentado se defender alegando ter apenas “abraçado” o deputado, acabou tendo o mandato suspenso por 180 dias, em decisão inédita do Colégio de Dirigentes da Casa. No mandato anterior, como vereadora, Isa Penna já havia sofrido violência verbal dentro de um elevador da Alesp.
No ano seguinte, Erika Hilton, Carolina Iara e Samara Sóstenes, três parlamentares do PSOL, sofreram ameaças na mesma semana na cidade de São Paulo. A primeira foi perseguida por um homem que tentou invadir seu escritório de trabalho e as outras duas vivenciaram episódios de tiros na frente de suas casas. Todos se sentiram intimidados e relacionaram as ameaças ao facto de serem representantes políticos negros e transexuais. A Casa Legislativa não forneceu reforço de segurança para nenhum dos parlamentares vítimas da violência.
A deputada Mônica Seixas (PSOL), também negra, sofreu episódios de machismo e racismo em sequência, na mesma Alesp, no ano de 2022. Foi chamada de louca pelo deputado Gilmaci Santos, do Republicanos, e, no dia seguinte, ouviu o deputado Wellington Moura, do mesmo partido, afirmar que colocaria um cabresto na boca. Moura foi condenado pela Justiça em junho deste ano pelo crime de violência política de género.
Declarações e atitudes sexistas e desrespeitosas são comuns entre os parlamentares. O deputado federal Nikolas Ferreira foi condenado a indenizar a colega deputada Duda Salabert (PDT) por se recusar a chamá-la pelo pronome feminino. O deputado estadual Arthur do Val (Podemos) afirmou em áudio que as mulheres refugiadas da guerra na fronteira entre a Ucrânia e a Eslovênia eram “fáceis” porque eram pobres.
A deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL) teve seu microfone cortado três vezes pelo vice-tenente-coronel Zucco (Republicanos), presidente da CPI do MST, numa clara evidência de que as mulheres continuam a ser repetidas vezes interrompidas e silenciadas no exercício de suas funções. mandatos.
Embora as mulheres constituam a maioria do eleitorado do país e estejam presentes na liderança e coordenação das organizações comunitárias e na representação da sociedade civil, persiste a sub-representação das mulheres em posições de poder nos espaços institucionais. O retrato do parlamento ainda é a imagem do homem branco, cisgênero, heterossexual e de meia-idade.
A violência política baseada no género é caracterizada como crime desde 2021, e as eleições autárquicas deste ano serão as primeiras ao abrigo da nova legislação. Os exemplos citados neste texto mostram a amplitude de formas como essa prática pode se apresentar, o que exige um olhar cuidadoso e constante para a questão por parte da Justiça.
Como 26 mulheres, de um total de 559 parlamentares, participaram da elaboração da Constituição Federal de 1988 até hoje, cada vez que pegamos nossos cartões eleitorais para votar, sabemos que estamos lutando para garantir e ampliar direitos fundamentais como a igualdade de gênero , licença maternidade, acesso a creches, direitos reprodutivos e trabalhistas e propriedade de terras. Mas tudo isto foi e ainda é conseguido no meio de inúmeras violências contra aqueles que estão dispostos a participar activamente na política.
Você quer aterrorizar um homem? Basta dizer que ele será tratado como uma “mulherzinha”. Nenhum homem quer ser tratado como uma mulher e experimentar as sensações de viver abaixo do topo da pirâmide social e ser vulnerável a todos os tipos de violência, difamação, humilhação, subjugação, assédio e perversidade que um ser humano pode experimentar. Se os marcadores de género, raça, classe e aspectos da diversidade sexual se cruzarem, os resultados serão ainda mais esmagadores.
Como mulheres e cidadãs, sabemos a importância de estarmos representadas em todas as instâncias políticas, mas também sabemos quão alto é o preço que pagamos para ocupar estes espaços. É hora de utilizar todos os mecanismos legais para prevenir e punir atos de violência baseada no género, LGBTfobia e racismo. Garantir os direitos das minorias políticas é uma base fundamental para a afirmação e consolidação da democracia.
Afinal, ainda somos o país das mulheres que não vivem, apenas suportam. Mas a estranha mania de ter fé na vida escrita pelo poeta continua aqui. Continuemos em vigília, protegendo uns aos outros e a nós mesmos. Lutaremos pelo fim da violência política de gênero e pela implementação do Estado Democrático de Direito no Brasil. Afinal, você sempre tem que ter um sonho.
Este texto não representa necessariamente a opinião da CartaCapital.