Sob o comando do hoje deputado e candidato de Jair Bolsonaro (PL) a prefeito do Rio de Janeiro, Alexandre Ramagem (PL-RJ), a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) quebrou o protocolo oficial de atividades de inteligência para infiltrar e monitorar o Alemão e Complexos de favelas da Maré, na cidade do Rio de Janeiro, entre 2021 e 2022.
A chamada Operação Troia envolveu a instalação de câmeras escondidas em mototáxis para espionar as duas comunidades, onde vivem quase 180 mil pessoas, segundo o Censo 2022. Dois homens de confiança da Ramagem na Abin coordenaram a ação, que mobilizou agentes e recursos milionários do setor de operações, com a utilização de veículos e parte do orçamento secreto do órgão, sem que houvesse justificativa, razão e objetivos esperados nem registro de comando que formalizaria o trabalho, segundo fontes ouvidas pelo Agência publica.
Três anos depois das atividades clandestinas no RJ, as autoridades ainda não encontraram “justificativas plausíveis” para a operação Trojan, alvo de investigação da Abin, da Controladoria-Geral da União (CGU) e da Polícia Federal (PF). Reservadamente, uma pessoa que acompanha as investigações disse à reportagem que a operação “não foi devidamente motivada, justificada, nem registrada”, algo considerado “inaceitável” segundo os padrões da Abin – o que, por si só, torna a operação Trojan de espionagem ilegal.
O antigo Centro Nacional de Inteligência (CIN) e a superintendência da Abin no Rio de Janeiro conduziram a operação com base em um “coleção de temas que não foram estruturados ou justificados”, segundo uma das fontes ouvidas pelo Públicodesrespeito à doutrina oficial das atividades de inteligência – outro motivo que reforça a ilegalidade da operação, conforme apura o relatório.
Como a iniciativa não seguiu o Política Nacional de Inteligênciaexiste a possibilidade de indiciamentos e processos criminais contra agentes que atuaram na operação troiana, além da possibilidade de aplicação de multas e até risco de demissão de servidores envolvidos no caso.
De acordo com documentos oficiais consultados por Públicoum dos coordenadores da operação nas favelas do Rio de Janeiro fazia parte do Paralelo Abin: trata-se do policial federal Felipe Arlotta Freitas, assessor direto de Ramagem durante sua gestão na agência de inteligência.
O outro agente que chefiou as atividades ilegais nos complexos do Alemão e da Maré se chama Victor Felismino Carneiro, ex-capitão do Exército que se tornou, na prática, diretor da Abin nos últimos oito meses do governo Bolsonaro, em 2022.
Filho do atual presidente do Clube Militar, Victor Carneiro admitiu ter repassado informações sobre operações da Abin à Ramagem em meio às investigações da PF sobre a Abin paralela, conforme noticiou o jornal O Globo.
Felipe Arlotta (à esquerda de Carlos) e Alexandre Ramagem (à direita de Carlos) passaram o Réveillon com Carlos Bolsonaro em 2019. Créditos: Reprodução Instagram Carlos Bolsonaro
Ex-segurança de Bolsonaro, “assessor direto” de Ramagem foi um dos coordenadores da operação
Camaradas da PF, Felipe Arlotta e Alexandre Ramagem se tornaram próximos durante a campanha eleitoral de 2018, quando trabalharam como seguranças do então candidato à presidência Jair Bolsonaro.
Ao lado de outros seis agentes da PF, Arlotta foi afastado da corporação por envolvimento com a paralela Abin em janeiro, após decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes.
A Público constatou que, na época da Operação Trojan, Arlotta ocupava uma “coordenação importante” no antigo CINuma parte fundamental das atividades clandestinas paralelas da Abin durante o governo Ramagem.
Processo administrativo disciplinar aberto pela CGU em 10 de abril este ano sugere que Felipe Arlotta nem trabalhava oficialmente na Abin na época da Operação Trojan.
A Corregedoria da CGU investiga os motivos das 83 ausências injustificadas de Felipe Arlotta na PF entre agosto de 2021 e junho de 2022, período que coincide com a operação ilegal nos complexos do Alemão e da Maré.
A Público também apurou que o antigo CIN recebeu a maior parte do financiamento secreto da Abin durante todo o governo Bolsonaro, abrigando agentes que usaram ilegalmente programas de espionagem durante o período. Às vezes, o material coletado gerou relatórios cujos destinos permanecem desconhecidos até agora.
Um dos casos ligados à CIN é o escândalo First Mile, sobre a utilização ilegal do software com o mesmo nome, da empresa israelense Cognytemonitorar em tempo real a localização dos opositores do antigo governo.
A PF acredita que Felipe Arlotta também utilizou a Primeira Milha. Em 2019, ele teria utilizado um software espião para monitorar a localização do advogado Rodrigo Bertholdo, próximo do então presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia (PSDB), por ordem de Alexandre Ramagem.
Segundo a investigação, Arlotta faria parte do núcleo de “subordinados” da Abin paralela, formado por “policiais federais lotados na Abin que atuavam como ‘funcionários‘para a alta direção, cumprindo determinações, monitorando metas e produzindo relatórios” sob as ordens de Ramagem e do policial federal Carlos Afonso Coelho, que formava o núcleo da “alta direção” da paralela Abin enquanto comandava oficialmente o órgão de inteligência.
Como reportado para o PúblicoCoelho voltou à PF durante o governo Lula, indicado para uma das diretorias da corporação pelo diretor-geral, Andrei Rodrigues, mas foi afastado do cargo por ordem do STF.
A Público Ele procurou Felipe Arlotta para saber dele sobre as acusações da PF e seu envolvimento na Operação Troia, mas ainda não obteve resposta.
Victor Felismino Carneiro ao lado de Silvinei Vasques; Carneiro foi nomeado vice-diretor da Abin em 2022. Créditos: Reprodução Portal Gov.br
Ex-militar, diretor da Abin em 2022 coordenou ação ilegal no RJ
A Operação Trojan envolveu outro nome de confiança de Ramagem: o agente Victor Felismino Carneiro. O oficial tem linhagem militar, tanto como filho do atual presidente do Clube Militar, o general da reserva Sérgio Tavares Carneirocomo ser ex-capitão do Exército Brasileiro.
Carneiro deixou o quartel para ingressar na Abin, mas não cortou vínculo com as Forças Armadas. Em 2019por exemplo, concluiu o curso de Inteligência Estratégica na Escola Superior de Guerra, vinculada ao Ministério da Defesa.
Áries (de terno) e militares. Créditos: Reprodução: Exército Brasileiro
Na época da Operação Troia, Carneiro era superintendente da Abin no Rio de Janeiro, onde trabalhou até abril de 2022 – época da saída de Ramagem da entidade para concorrer a uma vaga no Congresso.
Carneiro ascendeu na inteligência após a operação ilegal no Rio de Janeiro. Em 12 de abril de 2022antes do início do período eleitoral, o agente tornou-se vice-diretor, número 2 na hierarquia do órgão, e disse em entrevista ao jornal O Globo que era “necessário desmistificar a Abin”. Na época, o governo não indicou substituto para Ramagem e, devido à vaga no cargo, Carneiro tornou-se diretor da Abin até o final do mandato de Bolsonaro, enquanto o golpe se intensificava no país, com o surgimento de Bolsonaro acampa em frente a quartéis e outras instituições militares.
O ex-diretor da Abin também viu seu nome vinculado à trama, graças à reunião de cúpula do governo Bolsonaro, realizada em 5 de julho daquele ano. O ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, comentou com Jair Bolsonaro que conversou com Victor Carneiro sobre “montar um esquema para monitorar o que os dois lados” estavam fazendo nas eleições de 2022 – sem especificar o que “dois lados” nem o “esquema” a ser montado com a Abin.
Antes de o general contar o que discutiu com o então diretor da Abin, Bolsonaro o interrompeu, pedindo que conversassem “em privado, na nossa sala”, sobre o trabalho da inteligência do governo federal nas eleições de 2022. Gravação da reunião faz parte do rol de provas da PF na investigação do fatídico dia 8 de janeiro.
A Público Ele procurou Victor Carneiro para ouvi-lo sobre sua participação na Operação Troia e suas negociações com o ex-ministro do GSI antes das eleições, mas até o momento não obteve resposta.
Carneiro (de terno preto) em visita ao Centro Integrado Nacional de Comando e Controle (CICCN). Créditos: Reprodução Abin
Pela PF, o general Heleno e outros dois militares – o tenente-coronel Mauro Cid e o coronel Marcelo Câmara, ex-ajudante de campo e ex-assessor especial de Bolsonaro, respectivamente – formaram o “Inteligência paralela”dos golpistas.
Segundo a investigação, o grupo de Augusto Heleno seria responsável por coletar “dados e informações que possam auxiliar na tomada de decisão” de Jair Bolsonaro na condução do golpe. Para tanto, os integrantes monitoraram a localização dos ministros do STF Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, do presidente do Congresso, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), do presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL), entre outros autoridades, para “captura e detenção” durante o golpe de estado.