“Na eleição ninguém sabe como vamos conseguir votar. Esse é o maior problema, não sabemos. As autoridades competentes têm que se posicionar sobre as nossas condições, porque é feio”, é o que diz o barqueiro Francisco Osório, 63 anos. Ele é morador da Ilha Marrecão, em Manacapuru, município próximo a Manaus, no Amazonas.
Barqueiro Francisco Osório, 57 anos, é visto à frente de sua embarcação na entrada do Lago Cabaliana, em área onde o rio é raso, devido à forte seca
No estado, 120 mil eleitores em 37 municípios deverão passar por dificuldades no dia das eleições municipais deste ano. Isso ocorre porque um acompanhamento do Tribunal Regional Eleitoral do Amazonas (TRE-AM) aponta que 263 locais de votação serão afetados pela seca recorde que atinge a região. Com rios secos e sem alternativas de transporte terrestre, estes eleitores podem não conseguir viajar para votar. Há 504 mesas de voto nesta situação, segundo dados atualizados a 12 de setembro.
A situação é ainda mais crítica em 12 municípios, classificados pelo TRE como condições impeditivas. Neles, o local de votação possivelmente será isolado e poderá exigir o uso de helicópteros. Quase 16 mil eleitores votam nessas áreas.
O município com mais pessoas em áreas restritas é Parintins, com mais de 5 mil eleitores nessas condições. Os locais de votação afetados ficam próximos ao rio Amazonas. Parintins também é a cidade com maior número de locais de votação que podem ser fechados, com sete.
O levantamento do TRE também inclui locais com condições severas e moderadas. Na situação grave, que abrange locais de muito difícil acesso e que podem depender do transporte de animais, são afetados 108 locais de votação, 192 mesas de voto e 44 mil eleitores. Na faixa moderada, há áreas que apresentam dificuldade, mas que podem ser acessadas com pequenas embarcações, como lanchas. Nesta categoria são 120 locais de votação, 245 seções e mais de 60 mil eleitores afetados.
Por que isso importa?
- Levantamento do TSE mostra que 120 mil eleitores – quase 5% do total do estado – poderão ser afetados pela seca.
- A seca é uma das mais severas já registradas, com 62 municípios em situação de seca extrema, severa ou moderada.
A Agência Pública conversou com Leandro Simão, secretário de Tecnologia da Informação do TRE-AM e um dos idealizadores da pesquisa. Segundo o secretário, no início do ano foi enviado um formulário a cada chefe de cartório para entender como o processo eleitoral seria afetado caso a situação de seca de outubro de 2023 se repetisse em 2024. O painel do TRE foi criado com isso informações juntamente com um relatório trimestral da Defesa Civil.
Simão explica que as eleições acontecem sempre no período de seca, mas este ano o desafio ficou maior. “O mês de outubro no Amazonas é um mês seco, só vai começar a chover e ter água lá em dezembro, então o TRE amazonense sempre realizou a eleição com certa dificuldade. Obviamente que em 2024, por ser a maior seca, a dificuldade aumentou”, afirma.
Por se tratar de uma situação prevista, já existe um plano traçado para a deslocação de pessoal e equipamentos durante o período eleitoral. “O TSE tem convênio com o Ministério da Defesa. O Ministério determina que as Forças Armadas forneçam apoio logístico ao TRE. Dentro deste apoio logístico, contamos com rotas de helicópteros, que utilizam equipamentos da Aeronáutica e do Exército. Utilizamos esses equipamentos para fazer algumas viagens, levando a equipe eleitoral, o técnico de transmissão, o mesário e a polícia a locais de difícil acesso”, afirma.
Este ano, a diferença é que alguns municípios que não tiveram dificuldades estão sendo atingidos pela seca e tendo que mudar a estratégia. “Nesta eleição já houve três pedidos de helicópteros que não estavam nas últimas eleições, não estavam no plano inicial e serão incluídos agora, municípios que perceberam que está mais seco do que deveria e terão dificuldade”, disse. diz.
Entre as novas encomendas de helicópteros está o Iranduba. São mais de mil eleitores que podem ficar isolados em Iranduba, em três bairros da cidade, todos próximos ao Rio Negro.
Seca afeta locais de votação no terceiro município mais populoso do Amazonas
Em Manacapuru, na Região Metropolitana de Manaus – terceiro município mais populoso do estado –, a seca deverá aumentar o tempo de votação das pessoas.
“Na eleição de 2022 eu estava lá, distribuí as urnas em locais de votação de difícil acesso na zona rural. No sábado, a partir das 13h, os barcos partiram. Nesta eleição de 2024, ela terá que fazer isso pela manhã. Vai continuar a ser um barco, as pessoas vão viajar em barcos, mas terão de o fazer de manhã, porque uma viagem que antes demorava duas horas, agora demorará quatro. Vai ter que ser mais lento, a embarcação normalmente é menor, o nível da água cai e a embarcação pode ficar presa”, afirma Simão.
Apesar das dificuldades, o técnico garante que não há possibilidade de adiamento ou cancelamento das eleições.
Manacapuru possui 18 locais de votação e 31 assembleias de voto em condições severas, com grande dificuldade de acesso. São mais de 8 mil eleitores afetados. Além disso, o município também possui quatro locais de votação em situação moderada, afetando 881 eleitores.
Embarcação encalhada em Manacapuru; Mesmo com dificuldades, data das eleições não deve mudar
Em entrevista à Pública, Sabriane Guedes, chefe do cartório da cidade, diz que eleições acontecem sempre durante a estação secamas que Manacapuru nunca foi tão afetado como em 2024. “Normalmente no segundo turno chega aqui [a seca]mas só temos um segundo turno nas eleições estaduais. As secas sempre ocorrem aqui no município, mas da forma severa que está acontecendo este ano e aconteceu no ano passado, nunca aconteceu de fato”, afirma.
Manacapuru fica na região do Baixo Solimões. Segundo relatório da Defesa Civil do Amazonas, a estação de referência da cidade registrou nível de 7,54 m no dia 9 de setembro. Nos últimos 10 anos, os níveis do rio Solimões em Manacapuru iniciaram o mês de setembro em média, com valores de 14,04 metros —quase o dobro do nível registrado agora.
Guedes afirma que são os canais e lagos próximos ao rio que transportam a comunidade e que municípios próximos também serão afetados. “No Rio Manacapuru, o que conecta as comunidades são canais e lagos. O maior é o Lago Grande, que liga diversas comunidades e o município de Caapiranga, que também faz parte da sexta zona. Esse lago secando, que é a previsão, você pode passar com o rabo [motor para embarcações] ou até mesmo de canoa”, explica.
Além do Lago Grande, comunidades próximas ao Lago Sacambu também podem ficar isoladas por conta da seca. Segundo o painel, há seis locais de votação próximos que estão em estado grave.
Guedes diz que o trabalho por enquanto é monitorar a situação e, se a seca aumentar, mudar a logística, aumentar os dias de viagem e mudar os meios de transporte. Nesse monitoramento, eles vão até os locais e conversam com as comunidades e responsáveis. “Teremos que acompanhá-lo dia após dia. Hoje a previsão é que com os voos, que é o transporte mais comum da população local, todos cheguem aos seus locais de votação, mas daqui a 15 dias poderá estar mais seco”, comenta.
Uma das mudanças logísticas que podem ser feitas é o envio da urna eletrônica de helicóptero às comunidades. “Pelo que conversamos, tanto com as pessoas da comunidade quanto com quem fornece transporte, conseguiremos chegar lá. Mas, na pior das hipóteses, se não conseguirem chegar, porque as comunidades não têm como sair de lá, serão enviados a urna, o material e o helicóptero”, afirma Guedes.
O barqueiro Francisco Osório nasceu e cresceu na Ilha do Marrecão, em Manacapuru, e diz que a seca deste ano é mais severa que a de 2023. “O ano passado, nesta época, passamos aqui com tranquilidade. Isso é só o começo, não sabemos quanto tempo vai durar a seca. A situação é crítica para nós, a água já começou a ficar verde, daqui a alguns dias não estará nem própria para consumo e não temos onde tirá-la. Se não viermos buscar na cidade, nós mesmos vamos beber”, diz sobre as dificuldades que a seca trouxe.
O agricultor e pescador Janderson Lima, 27 anos, morador da comunidade Pesqueiro, às margens do Rio Solimões, diz que a seca dificultou seu trabalho. “Olha a que distância fica a praia. A tendência é ficar cada dia mais seco e afastado. Está ficando muito difícil trabalhar, carregar água, nossa plantação, carregar banana, carregar mandioca”, diz. Lima explica que precisa pegar os produtos da plantação e levá-los até a beira do rio para colocar nos barcos. Hoje, a viagem leva cerca de 15 minutos.
O pescador vive numa casa flutuante, com a mulher, a filha e o pai. Devido à seca, a casa da família está abandonada, sem condições de se locomover. “Devido à seca ser muito severa e muito rápida, não tivemos tempo de retirar o barco flutuante ou o barco, então ele encalhou”, explica.
Josué Oliveira, 51 anos, pai de Janderson e também agricultor e pescador, diz que os prejuízos são grandes, pois terá que mandar calafetar a embarcação. Sobre as eleições, Josué diz que “vai ser complicado, pela distância que temos para pegar a canoa e atravessar até Manacapuru. Tem que ir à cidade votar, está tudo na cidade”, afirma.
Elisa Caroline, 19 anos, caminha com a filha Júlia, 2, no colo por longas distâncias até chegar a uma poça d’água para lavar roupa na comunidade Pesqueiro
A seca passada que pode se tornar o futuro
A última atualização do Monitoramento de Secas e Impactos no Brasil a partir do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) mostra que, No mês de agosto, o estado do Amazonas teve quatro municípios em seca extrema, 36 em seca severa e 22 em seca moderada.. Segundo dados publicados no dia 3 de setembro, a previsão para o mês é de oito municípios com seca extrema, 42 com seca severa e 12 com seca moderada.
Segundo José Antônio Marengo, Coordenador Geral de Pesquisa e Desenvolvimento do Cemaden, a seca que atingirá a Amazônia em 2024 é a mesma de 2023, e não uma nova. “Neste momento podemos dizer que é mais grave que no ano passado, porque, na verdade, esta seca de 2024 já tinha começado em 2023. Em 2023, o nível dos rios caiu em setembro, choveu um pouco em janeiro, mas depois voltou a cair. Ou seja, a situação das chuvas de verão foi muito fraca e não valeu a pena. Desta vez não chove nada e isso aliado às altas temperaturas está fazendo com que o nível dos rios caia muito, pior que no ano passado”, afirma.
Marengo comenta que o que se esperava era que, terminado o fenômeno El Niño, as chuvas voltassem ao normal, mas isso não aconteceu, levando à continuação da seca. Questionado sobre as previsões para o final do ano e início de 2025, aponta o perigo de mais um período de seca. “Não é mais uma seca, é uma continuação da seca do ano passado. Se não chover em outubro, poderemos ver esta seca continuar no verão de 2025, que é a nossa maior preocupação. Se não chover na hora certa, poderemos repetir a situação atual, que já é ruim”, afirma.
Segundo Marengo, o fenômeno La Nina pode se intensificar acompanhado de chuvas na Amazônia, mas ele acha difícil que sejam chuvas abundantes, capazes de molhar o solo. “Por enquanto há um desequilíbrio, ar seco, solo seco, altas temperaturas, falta de chuva, muita radiação solar, isso é ideal para aumentar o risco de incêndio e reduzir o nível dos rios”, acrescenta.