Mesmo inelegível até o final desta década, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) terá papel decisivo em grande parte dos resultados das eleições municipais de outubro. Mas não apenas porque continua a ser um líder político relevante no cotidiano brasileiro, mantendo uma base mobilizada em torno de sua agenda, como observam há muito tempo os analistas, ou porque é um militante eleitoral de muitos candidatos locais.
Uma pesquisa agora publicada pela Fundação Friedrich Ebert, ligada ao Partido Social Democrata da Alemanha, aponta que há um aspecto ainda mais estrutural em jogo: Bolsonaro continua capaz de estabelecer critérios que orientem a decisão de uma parte significativa do eleitorado.
“São vetores que estão concentrados nessa grande disputa social por valores morais. E, nesse campo, ele é muito influente”, explica Thais Pavez, que integra o Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da Universidade de São Paulo (USP). São questões como a defesa da família como unidade social fundamental e a oposição à legalização do aborto e à “ideologia de género” (a ideia de que o género não é uma questão meramente biológica ou binária).
Ela conduziu o estudo ao lado de outras duas grandes referências nas análises da extrema direita no Brasil: a cientista política Camila Rocha, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), e a cientista social Esther Solano, professora do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal. Universidade de São Paulo (Unifesp).
“Sem contar que esta eleição também será profundamente marcada pela experiência da violência urbana – outro campo onde o bolsonarismo tem uma narrativa ativa. Isso tende a pesar na definição de muitos votos”, acrescenta Pavez, lembrando que esse público também tende a apoiar uma maior flexibilização regulatória sobre armas de fogo.
Diretrizes nacionais sobre
A pesquisa se baseia em uma série de entrevistas com pessoas que votaram em Bolsonaro nas últimas eleições presidenciais, em 2022, realizadas em três metrópoles do país: São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Segundo analistas entrevistados pela DWserão justamente essas capitais onde Bolsonaro e o Partido Liberal (PL) concentrarão seus esforços para eleger candidatos aliados e tentar abrir caminho para a campanha presidencial de 2026.
Diferentemente da pesquisa quantitativa, em que os participantes respondem a questionários pré-estabelecidos, porém, o estudo de Friedrich Ebert privilegiou conversas abertas mediadas entre pequenos grupos, onde os pesquisadores abordavam temas mais importantes para o universo Bolsonaro, como a legalização do aborto, por exemplo. , passando por debates económicos, como o papel do Estado na economia, até questões mais atuais, como as incursões israelitas na Faixa de Gaza.
Depois, concentraram todas as suas respostas em áreas que têm sido foco de campanhas eleitorais. Foi assim que os pesquisadores perceberam outro fenômeno relevante: um peso maior das grandes agendas políticas, que abrangem todo o país, nas discussões que acontecem no nível das cidades.
“A capilarização do bolsonarismo é muito forte. Isto significa que a dinâmica nacional, que anteriormente não costumava dar o tom às eleições locais, está agora fortemente reflectida nos debates políticos em municípios de média dimensão e mesmo pequenos. Isto também se deve às igrejas evangélicas, que funcionam como força mobilizadora permanente. O resultado é uma capacidade significativa do bolsonarismo de definir votos”, explica Pavez.
Em junho, pesquisa do instituto Quaest mostrou que o governo Lula é reprovado por 49% entre os que votaram em Bolsonaro em 2022. Poucas semanas depois, o Datafolha mostrou que um terço do eleitorado brasileiro (33%) avalia negativamente o atual mandato. presidente – número que se mantém semelhante desde a última eleição presidencial.
Apoio de Bolsonaro é importante, mas não define voto sozinho
Outra conclusão da pesquisa é que, embora o apoio local a Bolsonaro tenda a desempenhar um papel importante, não será suficiente para determinar as escolhas mesmo dos eleitores anteriormente simpáticos ao ex-presidente.
“Dois fatores ajudam a entender isso: a capacidade de cada candidato de Bolsonaro desempenhar um bom papel após ser eleito e a possibilidade de ele trair o movimento”, observa Camila Rocha, autora de Menos Marx, mais Mises (No entanto, 2021).
Ela cita os exemplos de Wilson Witzel, governador eleito do Rio de Janeiro em 2018 na mesma linha de Bolsonaro, mas que sofreu impeachment por corrupção um ano antes do final do mandato; e João Doria, governador de São Paulo que foi eleito acenando para o ex-presidente e depois, durante a pandemia, tornou-se seu principal rival político. “Esses dois casos foram frequentemente citados pelos entrevistados como exemplos de como, caso uma pessoa seja eleita, não há controle total sobre o que ela fará”, acrescenta Rocha.
Os contextos políticos das cidades estudadas variam, mas dão alguma dimensão ao argumento. Em São Paulo, Bolsonaro apoia Ricardo Nunes (MDB), mas não sem conflitos: o ex-presidente já deixou escapar que a aliança foi feita em meio a incertezas. Há poucos dias, em entrevista a uma rádio de Natal, no Rio Grande do Norte, ele disse que Nunes não era o “candidato dos seus sonhos”, e elogiou Pablo Marçal (PRTB). “Ele É uma pessoa inteligente”, disse ele.
Camila Rocha observa esta situação com particular interesse. “A campanha está comprovando o que dizemos na pesquisa”, diz ela. “O apoio formal de Bolsonaro, como Nunes já tem, não é suficiente. Para este eleitorado o mais importante é que as ideias do candidato convirjam e isso parece estar a acontecer mais com Marçal. Não é trivial que ele esteja reivindicando a posição de ‘verdadeiro’ candidato de Bolsonaro”, analisa.
Esta semana, pesquisa da Atlas Intel também confirmou essa percepção: Marçal tem 16,3% das intenções de voto do eleitorado paulista, atrás de Guilherme Boulos (PSOL, 28,5%) e Nunes (21,8%). Em julho, segundo o Datafolha, Marçal tinha 10% e, no início do mês, 14%. “Ele conseguiu deixar o próprio Bolsonaro dividido porque, na prática, ele se tornou o candidato ‘antissistema’, assim como o ex-presidente sempre se colocou”, explica Rocha.
No Rio de Janeiro, reduto eleitoral de Bolsonaro, o ex-diretor da Agência Brasileira de Informações (Abin) Alexandre Ramagem mantém o mesmo nível de intenção de voto mesmo depois de ter sido alvo, em julho, de uma investigação do Supremo Tribunal Federal que apura suspeitas de ilegalidades na agência durante sua gestão. Na ocasião, Bolsonaro chegou a viajar às pressas para a capital fluminense para participar de um evento de sua campanha. Ramagem, porém, permanece muito atrás do atual prefeito, Eduardo Paes (PSD), que lidera confortavelmente as pesquisas.
Em Belo Horizonte, por sua vez, o deputado estadual Bruno Engler (PL) aparece há meses em segundo lugar nas pesquisas, atrás do ex-apresentador de TV Mauro Tramonte (Republicanos). No início de agosto, Engler conseguiu levar o popular deputado federal Nikolas Ferreira, do mesmo partido, ao lançamento de sua campanha, quando Bolsonaro apareceu em um vídeo gravado oficializando seu apoio – o que, até o momento, parece não ter impulsionou sua candidatura. .
E nas cidades médias? Para Camila Rocha tudo depende das bases sociais locais. “No Rio e em São Paulo há muitos municípios significativamente bolsonaristas. Neles, o apoio de Bolsonaro ao candidato local pode ser suficiente por si só.”
2024 como uma prévia de 2026
Entre os critérios que devem pesar na decisão do eleitorado estão as narrativas dos candidatos de Bolsonaro sobre valores e seu programa de segurança pública, além do sentimento, entre apoiadores do ex-presidente, de que a “arrumação doméstica” iniciada por ele em 2019 foi interrompida com derrota nas urnas, em outubro de 2022.
As atuais eleições municipais seriam, portanto, uma forma de retomar esse projeto – que envolve desde uma busca pela hegemonia dos valores cristãos até um estímulo mais robusto à figura do “empreendedor”. “O diagnóstico dessas pessoas é que o Brasil convive com valores ‘invertidos’ e que o bolsonarismo é uma forma de retornar aos valores corretos. Então, a votação de outubro reforça uma expectativa de transformação do país nesses moldes”, afirma Thais Pavez.
Em São Paulo está o ator fundamental desse caminho: Tarcísio de Freitas, governador apontado pelos entrevistados como a principal aposta do bolsonarismo para vencer as eleições de 2026 e retomar a “arrumação” do país.
Quando os pesquisadores perguntaram sobre o nome mais viável para esse projeto, Tarcísio superou os nomes do deputado Nikolas Ferreira (considerado “muito jovem” para o cargo, apesar de “combativo”) e da ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, que, “porque ela é mulher, ela é mais vulnerável a ataques políticos”, segundo alguns entrevistados.
“Eles [Bolsonaro e o PL] vão empregar todos os meios possíveis para conquistar o maior número possível de prefeituras”, afirma Rocha.
“Os apoiadores de Bolsonaro se reconhecem como membros de um processo que não acabou. É por isso que Bolsonaro pode existir sem o próprio Bolsonaro. Basta uma liderança política viável”, explica Pavez.