A briga entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e a rede social X de Elon Musk já acumulou um saldo milionário em multas aplicadas pela Justiça Federal por descumprimento de decisões judiciais. Esses recursos tornam-se um excedente de receita e o Judiciário passa a ter autonomia para definir seu destino, desde que respeitadas as diretrizes orçamentárias do governo federal.
Neste caso, segundo a Corte, caberá ao ministro do STF Alexandre de Moraes definir como os valores serão aplicados. Segundo especialistas ouvidos pela DWos recursos podem ser aplicados em diversas possibilidades, como a modernização do Judiciário.
No dia 13 de setembro, por exemplo, Moraes obrigou os bancos a transferirem para a União 18,35 milhões de reais em valores bloqueados do X (antigo Twitter) e da empresa de tecnologia Starlink, condenada solidariamente por também pertencer a Musk. A multa acumulada foi aplicada no âmbito da petição 12.404, depois que a rede social ignorou ordens judiciais para bloquear contas e nomear representantes no Brasil.
Na quinta-feira, 19, o Supremo determinou nova multa diária de 5 milhões de reais após a plataforma driblar o bloqueio e conceder acesso a usuários brasileiros.
Essas sanções por descumprimento de decisão judicial foram aplicadas por Moraes com base na Lei 12.965/2014, o chamado Marco Civil da Internet, mas devem ser distribuídas conforme modelo do Código de Processo Civil (CPC). Segundo a assessoria de imprensa do STF, os valores agora estão “à disposição do tribunal para definição da destinação”.
“No caso mencionado, o valor de R$ 18 milhões foi transferido para uma conta à disposição do Supremo Tribunal Federal, que posteriormente orientará a destinação final, bem como quaisquer novos valores relativos a multas”, escreveu o STF, em nota. Quando questionado sobre as regras que definem a atribuição destes recursos, o Tribunal respondeu que “O ministro Alexandre de Moraes ainda decidirá como os recursos serão utilizados”.
Como funciona a gestão de multas judiciais?
A gestão e atribuição das multas atribuídas pelos Tribunais são diferentes em processos criminais e civis. Isso torna o caso julgado por Moraes representativo de um desafio jurídico que aparece com mais frequência no Brasil com o uso de plataformas digitais.
Isso porque, muitas vezes, as multas recebidas pelas redes sociais em processos como esse são aplicadas após a empresa descumprir um processo civil, como a ordem de bloqueio de conta, mas o processo tem origem em uma investigação criminal, como uma ato perpetrado por um usuário da plataforma.
“Esse debate começou a aparecer em 2014, quando a polícia começou a investigar crimes ocorridos no ambiente virtual e se deparou com plataformas digitais às quais não conseguia acessar”, disse Luciano Godoy, professor da FGV Direito SP, que também atuou como juiz federal.
As multas previstas no Código Penal e utilizadas como forma de pena em condenação criminal, possuem resolução específica do Conselho Nacional de Justiça que estabelece sua destinação.
Os valores pagos pelos condenados por um crime devem ser destinados, por exemplo, aos Fundos Penitenciários estaduais ou nacionais e utilizados para fins de modernização do sistema penal. Também foram liberados recursos para situações específicas, como as enchentes do Rio Grande, no Sul, e o combate às queimadas na Amazônia.
As multas aplicadas como sanções por descumprimento judicial podem ser estabelecidas pelo juiz como liminar ou como sentença desde 1994 e estão à disposição do Tribunal.
A gestão desses recursos é definida pelo novo Código de Processo Civil, que permite à União e aos estados criar fundos para modernizar o Judiciário. Mas embora a maioria dos estados da federação já tenha estabelecido uma estrutura para gerir os valores, o sistema de justiça federal os incorpora como receita extra no orçamento do Judiciário.
Após a arrecadação dos valores, o Tribunal tem autonomia administrativa e financeira para definir a forma de aplicação dos recursos dentro do seu planejamento orçamentário, conforme estabelece a Constituição.
Marco Civil da Internet não estabelece destino
Ao justificar a aplicação de sanções a X, porém, o ministro Alexandre de Moraes baseou-se em outra regulamentação, a do Marco Civil da Internet.
“Aí vem um debate sobre a multa combinatória, que agora foi aplicada pelo ministro Alexandre para o processo penal. Eles usam todo o esquema processual civil por analogia, acrescentando um novo elemento, que é a multa do Marco Civil da Internet, para gerar essa condenação”, disse Godoy, retomando casos semelhantes em que empresas como a Meta também foram multadas. “Ela [está] processo penal, mas não é a multa do processo penal”.
Embora leis como o CPC prevejam fundo para destinação de multas processuais, o Marco Civil da Internet não trata de ações judiciais em si, e não define onde deve caber o recurso de multas para quem violar as regras de uso da internet. ser aplicado. Também não estabelece qual autoridade administrativa seria responsável pela aplicação das multas, como a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), por exemplo.
Além disso, o Marco Civil também autoriza a aplicação de multas de até 10% do faturamento do grupo econômico no Brasilvalor muito superior ao previsto no Código de Processo e que deixou margem para a multa milionária cobrada de X.
Supremo tem autonomia para escolher aplicativo
O doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da USP, Rafael Garofano, entende que há uma contestação jurídica, já que o Marco Civil não estabelece a destinação dos recursos, mas entende que a destinação deve seguir o caminho natural das multas aplicadas no contexto de um processo civil.
“Se você adotasse uma analogia razoável, por exemplo, se a Senacon tivesse agido para proteger o Marco Civil da Internet e constatasse essa infração; no regulamento da Senacon define a destinação dos valores das infrações ao Fundo de defesa de direitos difusos”, afirmou.
“Agora o ministro está agindo com base nessa competência mais ampla, então ele está fazendo o papel da Senacom [por exemplo]. Como a lei não determina onde será aplicado esse recurso, entendo que esse recurso será destinado à conta do Judiciário”, completou.
Para Luciano Godoy, o Código de Processo Civil e o Marco Civil da Internet são aplicados conjuntamente neste caso.
“Não acharia estranho, nem ilegal, se, na falta de lei, o ministro criasse uma construção onde esse dinheiro tivesse que ser aplicado em uma finalidade que gerasse um bem social, como uma universidade, uma escola técnica ”, afirmou Godoy.
É comum que distribuições como essas sejam feitas em decisões de tribunais estaduais e federais, por exemplo, feitas pelo juiz responsável pelo caso. Por outro lado, por se tratar de receita extra, o recurso não poderá ser utilizado para custeio, como pagamento de salários, e o Supremo terá que prestar contas dentro das regras orçamentárias federais e justificar a utilização do recurso.
Como último recurso, se os montantes não forem utilizados, serão devolvidos à União no final do exercício orçamental.